Felipe Neto é o terceiro youtuber do país, com 34,3 milhões de seguidores até ontem, incluindo meu filho de seis anos que ainda o assiste boa parte do dia, apesar da polêmica que o cerca.
Foi ele quem comprou 14 mil livros de dez títulos de temática LGBT e mandou distribuir na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em protesto contra a decisão do prefeito Marcelo Crivella de mandar recolher o gibi de Os Vingadores com dois rapazes se beijando na capa.
Entre os quais Dois garotos se beijando, de David Levithan, Arrase, da drag queen americana Ru Paul, e Confissões de um garoto tímido, nerd e (ligeiramente) apaixonado, de Thalita Rebouças. Veja mais nessa página de O Globo.
A distribuição dos livros envelocrados em plástico preto e a inscrição “Esse livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas” fez a festa das editoras. Foi em grande parte responsável por catapultar a presença de público, as vendas e a importância da Bienal.
Ele também gravou um vídeo contundente, bem argumentado e bem fundamentado contra a censura, que teve mais de 1 milhão de visualizações em 48 horas e o apoio de vasta gama de celebridades influentes, inclusive os de sempre em causas do tipo, como Caetano Veloso.
Eu nunca tinha achado nada demais ou inadequado no seu conteúdo diário, que tolerava em alguns momentos por dever de pai: jogos, bizarrizes descobertas na internet, comentários sobre desenhos animados, encenações toscas e amadoras em nível de jardim de infância, embora o canal se anuncie direcionado a jovens e adolescentes.
Fora algum palavrão e o cabelo sempre pintado da marca de tinta própria que o filhote já encomendou, só me preocupava um tanto, na verdade, com o volume de propaganda, direta ou subliminar, que ele despeja em todos os vídeos, de produtos alheios ou próprios.
Não dei muita bola para os primeiros memes malévolos a chegar no WhatsApp, que crucificavam seu trabalho em função de suas posições políticas. Tomei como o tipo de correlação maldosa da facção policialesca dos bolsonaristas radicais.
Estranhei mas não rechacei, considerando num primeiro momento que ele poderia ter duas vidas paralelas, o cidadão político e o youtuber para crianças, sem que uma pudesse interferir na outra.
Até, porém, o dia em que o filhote chegou da escola reportando a fala da coleguinha da mesma idade de que o Felipe Neto é contra o “Bolsonario”.
— Você sabia, pai?
Era um comentário como qualquer outro acerca das descobertas da idade, dos tantos com que me puxa para a frente da TV. Mas, talvez inspirado pelo tom da colega, senti uma pitada de desconfiança de que seu ídolo deveria estar fazendo alguma coisa errada.
Continuei sem ver nada que eu não pudesse controlar ou reparar, dentro do conteúdo, até o vídeo e a distribuição paga, que transcendem em muito o seu papel de educador, ainda que involuntário.
Militância política
O vídeo foi postado dentro do canal, na mesma hierarquia dos mais recentes e mais vistos, de acesso sem limites para pessoas de 0 a 99 anos, de crianças que adoram ver suas palhaçadas pastelão vestindo peruca de papel a militantes de boa ou ma fé contra a censura e o prefeito.
Uma googlada e, aí sim, vou ver que a nova causa é parte de uma militância política mais intensa, regular e contundente contra Bolsonaro, desde que ele atacou os gays numa caminhada evangélica e a cada uma das impropriedades que ele vem produzindo diariamente.
“Crápula” e “desgraçado de alma podre” é o mínimo com que ele classificou o presidente ao condenar suas falas de apoio à vaquejada em Barretos e sobre a inexistência de trabalho escravo. No ritmo dos contra-ataques que desferiu contra a campanha pesada que vem recebendo de bolsonaristas, disse que o “PSL continua sendo o esgoto da política.”
Como no caso do WhatsApp, quis acreditar que essa militância estava restrita à sua conta no Twitter, adulta e ao que parece totalmente divorciada do seu conteúdo no canal. Mas acabei descobrindo que ela, tanto quanto o conteúdo contra censura e pró gay, já começa a extrapolar para cair dentro de seus vídeos.
Como no último, deste domingo 8, em que comenta maldades colhidas no Youtube de pessoas que, segundo diz, não deveriam viver em sociedade. Sobre uma americana que toma sem dó uma bola de uma criança num jogo de beisebol, diz que só pode ser alguém que vota em Bolsonaro.
Com certeza, essa mulher votou no Bolsonaro. É americana, mas voltou no Bolsonaro. Ela veio no Brasil, votou no Bolsonaro e voltou para os Estados Unidos.
Ver no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=RvA5P2kzC7Q
O que quer dizer que, se ele arrasta Bolsonaro e seus problemas para dentro de seus vídeos destinados a crianças, é bem certo que puxará também suas outras crenças e militâncias, inclusive a respeito de sexo homoafetivo.
Aí dou um cavalo de pau em minha tolerância, que tende a ser um tanto quanto elástica dentro de casa.
Sou visceralmente contra qualquer censura de Estado, não tanto por princípios ideológicos, mas por pragmatismo.
Desde que acompanho polêmicas a respeito, desde O Último Tango em Paris, em 1973, sei que ela só amplia a visibilidade do que se quer esconder. Quase sempre projetando irrelevâncias como o filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godar, nos anos 80.
Da mesma forma que tendo a ser mais liberal do que me aconselham dentro de casa, porque não acredito que pais tenham a facilidade que se apregoa para controlar o que os filhos veem. Envelope lacrado, sabe quem comprava Playboy, só estimula o desejo.
Foi assim com a TV com sua violência e seus casais pelados no horário nobre das novelas, produtos de comentários dos adultos na hora do jantar. É assim com a avalanche de opções e estímulos que pululam em qualquer tela de computador, celular ou tablet por perto, estando-se ou não estudando, informando ou divertindo.
Depois tem a marcha inexorável da história. As polêmicas em torno de episódios grosserios de censura são sempre sintoma de que algo muito importante já mudou no comportamento da sociedade. Quando se horrorizava com o tornozelo da vovó fora da saia ou as coxas abaixo da saia da tia na revolução sexual, é porque já estavam à mostra como motivo de assunto.
No mais, sempre achei que desligar a TV ou tomar o aparelho contaminoso da criança é a forma mais fácil e um tanto covarde de enfrentar a mudança dos costumes e a responsabilidade dos pais na educação. Minha tese, que me perdoem até os liberais dentro de casa, é que tudo pode ser visto, desde que você esteja disposto a sentar e a conversar com a criança.
Na falta justificada de tempo e mal explicada de preguiça para explicar conteúdo adversos aos livros escolares, os pais preferem desligar a TV ou tomar os aparelhos. E transferir a responsabilidade da conversa para a escola, como o sabem os supervisores.
Responsabilidade social do artista
Outra coisa, porém, é a responsabilidade do artista. E, neste sentido, nunca estive tão convencido da inadequação e um tanto de desonestidade de Felipe Neto.
Tenho uma cabeça de 60 anos, de provedor heterossexual na linha de uma família de valores conservadores e estabelecidos segundo os cânones da soceidade ocidental patriarcal, como não poderia ser diferente.
O que não me impediu de desenvolver uma personalidade aberta, até excessivamente para os padrões familiares, para as escolhas pessoais, mesmo de meus filhos. E tenho tempo de conversar com eles como contraponto às redes sociais.
Não acho também que será o fim do mundo se um deles se descobrir homossexual, embora prefira que constituam família sob os moldes em que fui criado. Porque ainda acho que é mais confortável, sem maiores turbulências.
Assim como acho difícil Estado e pais controlarem o fluxo, também não acho que a escolha de meus filhos, qualquer que seja ela, deva ser estimulada pelo tipo de militância política que cresce à nossa volta e mais ainda em oportunidades como essa da censura no Rio que Felipe Neto abraçou.
E muito menos que ela venha camuflada nos vídeos que se anunciam inocentes.
Não só que a militância seja prematura para uma criança e para pais sem templo de explicá-las, se for ostensiva, ou filtrá-las se for camuflada. Não há volume, paciência e tempo de argumentos que possam fazer ela entender as múltiplas complexidades que cercam as escolhas, sejam sexuais ou políticas.
Daí que o produto de aprendizado que brotará dos vídeos contaminados, sem a devida explicação, só podem ser preconceitos ou chavões. Quando uma criança ouve no meio de um vídeo que a americana má só pode ser alguém que vota em Bolsonaro, ela acaba por entender que Bolsonaro é também um monstro, sem saber por quê.
Também não resolve o artista ter vida paralela, de militante desaforado no Twitter e coleguinha gracinha de cabelo pintado, falando de animais bizarros no vídeo.
Felipe Neto tem todo o direito de ser o que quiser e tomar as posturas que julgar convenientes, no campo político, no campo de sua militância sexual. Pelo conteúdo do vídeo de protesto, exibe farta competência para tentar uma carreira política, convencional ou mesmo nas redes sociais, desde que num canal adulto.
Mas ele não pode embutir suas crenças no material que entrega a crianças e adolescentes, onde não há espaço suficiente e adequado para explicitá-las, esclarecer a fundo suas preferências e o impacto delas na vida de seus seguidores desavisados.
Ideal é que escolhesse uma das duas coisas como meio de vida. Porque me parece impossível dissociar as duas, sem muita explicação e honestidade.
Por mais que queira separar sua vida militante do Twitter com o rapaz bonzinho de cabelo pintado no Youtube, sempre vai ter uma criança que chegará para o pai com uma preocupação um tanto quanto assustadora da coleguinha na escola.
— Você sabia, pai?
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