Desde que bolsonaristas substituíram petistas na polarização política, com a mesma intransigência com a divergência e a mesma demonização do adversário como um inimigo a abater, ando me lembrando de Auto-engano.
O livro de 1997 do filósofo e economista Eduardo Gianetti da Fonseca é a mais fundamentada teoria que tive acesso sobre a estratégia humana, inconsciente, de mentir para si mesmo por não suportar a dor de estar errado.
Ele vai buscar na morfologia de outros seres vivos a origem de uma tendência ancestral ao engano na luta por sobreviver e procriar, para localizar no humano a capacidade de se enganar para sobreviver com conforto na selva das relações e da política.
Por coincidência, em meados de janeiro último, uma organização paulista de livre pensamento, a Palas Athena, o convidou para uma palestra sobre o tema do livro, 22 anos depois, preocupada com as minhas mesmas preocupações.
Ou seja, entender as razões que nos fazem deixar de ouvir a divergência, a bloquear a opinião contrária e a desqualificar o interlocutor, inviabilizando qualquer possibilidade de diálogo em busca de interesses comuns, ainda que divergentes.
Muito a propósito, ele começa a palestra comparando a censura brava da ditadura com o bloqueio comunicacional de hoje, a partir da boa frase de efeito de um amigo poeta ressentido com a perda da possibilidade de comunicação quando estamos enfim maduros para ela:
— Na ditadura, quando éramos jovens, as paredes tinham o ouvido. Agora, que somos maduros, os ouvidos têm parede.
Imagem pessoal e pública
Gianetti vai até exemplos saborosos dos mundos vegetais e animais para falar da mutação como estratégia de engano para sobrevivência. Como a da orquídea que mimetiza a borboleta para atrair o macho que vai polinizá-la, a da mosca macho que se simula fêmea para receber a comida de outro macho ou o primata que engana um grupo de cientistas encarregado de ensinar-lhe comunicação por sinais.
Daí, chega aos enganos instintivos humanos, dos mais óbvios, como a mãe que não admite que o filho seja gângster ou corrupto apesar de todas as evidências em contrário, aos mais sofisticados e coletivos. Que se espelha na divergência cognitiva séria entre a imagem que se tem de si e a que se lhe faz a sociedade.
Como uma mãe iludida, não há o pior ditador ou o pior carrasco nazista que não tenha uma imagem favorável a seu respeito. Porque é insuportável assumir uma visão depreciativa de si mesmo.
O auto-engano, espécie de pós-graduação do engano no dizer de Gianetti, ocorre quando enganamos a nós mesmos para evitar o desconforto da autodepreciação. E chega a tal ponto de sofisticação que o enganador só convence quem está tentando enganar quando está convencido da própria mentira que se contou.
No dizer de La Roche Foucault:
— Estamos tão acostumados a enganar os outros que acabamos enganando a nós mesmos.
Ou de Nietzsche:
— A principal mentira é a que contamos a nós mesmos; mentir para os outros é exceção.
Esse ponto cego, que pode estar relacionado a uma crença individual (intrapsíquica) a respeito de si mesmo, pode ser intrapessoal quando se projeta na relação com a coletividade. Quando fica mais nítida a desconexão entre a imagem que se faz de si mesmo e a que julga que os outros fazem a seu respeito.
Pergunte a um brasileiro se ele é confiável e ele dirá que sim. Quase 100% dos brasileiros se dizem confiáveis. Mas à pergunta feita por pesquisas respeitáveis se o brasileiro é confiável, a grande maioria responde que não.
O mesmo vale para racismo. Nada menos que 98% dos brasileiros se declaram sem preconceito, mas, quando a pergunta se inverte, a grande maioria admite que o brasileiro é racista.
Expandindo: por que os brasileiros acham tudo ruim, degradante, corrompido, mas não se incluem no bolo?
Como isso é possível?, pergunta-se Gianetti. Como ele pode ser diferente do meio em que está incluído? Como que a soma das partes pode ser diferente do todo?
Viés de confirmação
O clima do final dos anos 80, final do governo Sarney em muito parecido ao de hoje, com inflação, corrupção e descrença generalizadas, inspirou o filósofo que deu no livro de 1997 e no insight que pode explicar o ponto cego, o ouvido emparedado, que desandou na polarização tóxica e intransigente.
Que tem a ver com “viés de confirmação”.
Por instinto involuntário para se sentir confortável com suas crenças e sua auto-imagem, o homem só ouve, escolhe e ratifica as opiniões que confirmam o que pensa. Na mesma medida em que refuta e até apaga as que lhe são divergentes.
Já por volta do século XVI, rememora Gianetti, o padre racionalista francês Nicolas Malebranche dizia que “as nossas paixões todas se justificam; elas sugerem as opiniões que ajudam a justificá-las”.
Num estado de polarização e de críticas acerbadas, onde, acrescento, a autodefesa por sobrevivência procura proteger a reputação, você procura e aceita apenas o que reforça o que acredita. E filtra espontaneamente, não de caso pensado, como diz Gianetti, “tudo aquilo que contraria ou que possa comprometer aquilo que você deseja acreditar”.
A tal ponto que o cérebro apaga o que é divergente por desconfortável.
Há experimentos comportamentais respeitáveis que comprovam como que o ser humano escolhe o que quer acreditar. Entre dois argumentos do adversário, um consistente e outro raso, ele só se lembrará, posteriormente, do raso.
Nada menos que Charles Darwin, lembra Gianetti, confessou que anotava o pensamento com o qual discordava para voltar a ele. Porque já sabia, em seu tempo como sempre, que o cérebro tende a apagar o que não concorda.
E o pensamento científico ou o minimamente decente passa por isso.
Pensamento científico
— Cientista é um ser que se força a pensar contra o que prefere, porque toda nossa propensão é pensar a favor de nós mesmos — diz o autor de Auto-engano sobre o mais instigante de suas conclusões para encaminhar a discussão sobre nossa encruzilhada.
Lembrando o austríaco Wittgenstein, para quem “você jamais pensará de maneira decente se não estiver disposto a se ferir a si mesmo”, ele propõe humildade para fugir de certezas enraizadas e uma profunda disciplina “para se colocar de fora e analisar o que você profundamente não deseja acreditar”.
— A política é o grande laboratório de viés de confirmação, na medida em que você filtra o que não te fere, em que as pessoas só leem, só absorvem, só legitimam aquilo que reforçam o que elas preferem acreditar.
Na grande câmara de ecos da mídia social que estimula, facilita e potencializa de forma inédita esse apego a suas próprias verdades, a possibilidade de diálogo e de construção coletiva estão prejudicados.
— Estamos vivendo realmente uma situação muito preocupante de cisão da possibilidade de cooperação de forças distintas, que podem ser divergentes mas que têm convergência. Que, num ambiente menos tóxico, seria capaz de colaborar para construir aquilo que lhe é comum. E negociarem, com um mínimo de racionalidade, aquilo que não é convergente.
Há, na sua opinião, um risco para a democracia, sim. Não a formal, institucional, de tripartição de poderes e representação popular,
— Mas a do clima de respeito e cooperação em que o adversário não seja o inimigo a ser destruído, mas o rival com o qual se pode trabalhar de maneira construtiva em prol de causas comuns. A democracia fica muito frágil se a discussão calcada no viés de confirmação se torna a regra do jogo.
No meu esforço de me colocar de fora das verdades que escolhi, considerei acrescentar algumas outras inquietações minhas sobre fanatismo, essa manifestação clássica e mais ostensiva do auto-engano, que pode ser obsessiva nas minhas pequenas tentações de contestação do dia-a-dia.
Tentei partir da frase atribuída ao espanhol George Santayanna: “o fanatismo consiste em redobrar os esforços quando já se esqueceu o motivo”. Mas acabei por concluir que minha opinião a respeito só serviria para acrescentar a ótima frase ao que já arredondou Eduardo.
>>> Ver palestra no Youtube.
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