A Vale é um tipo de rainha da sucataria com uma história de risco contra ambiente e pessoas em mais de uma centena de barragens de tecnologia velha. É vilã de projeção nacional e internacional por seus tentáculos sobre os governos e os meandros da mais predatória das atividades industriais.
Sobretudo depois de ter protagonizado a maior de suas tragédias ambientais, menos de três anos depois de ter assombrado o mundo com a então maior, a explosão da barragem de Fundão, em Mariana.
É a segunda mineradora do mundo, primeira em produção mineral, com tanta produção de dejetos quanto de minério (cerca de 350 milhões de toneladas no ano passado), 220 bilhões de dólares de valor de mercado e 28 bilhões de dólares anuais de lucro.
A operação de Brumadinho corresponde a 2% de sua produção e os cerca de de 12 bilhões de reais bloqueados pela justiça para se antecipar à reparação de suas mais de 300 vítimas na cidade, como se diz, sai no cuspe.
Pois apesar disso — ou certamente que por isso tudo e sua competência abarcadora — ela dá um show de comunicação desde que a barragem de 85 metros de altura explodiu sem aparentemente tocar sirene sobre a sede e o restaurante frequentados pelos bípedes que lhe competia preservar.
Rede de comunicação
A partir de uma primeira nota pouco mais de uma hora depois do acidente, às 14h da sexta-feira, uma rede de comunicação parecia já montada em tempo recorde para disponibilizar toda informação sobre as primeiras providências e de interesse de parentes das vítimas, comunidade, órgãos de fiscalização e de imprensa.
Uma coletiva do próprio presidente Fábio Schvartsman e a publicação de um site atualizado a cada fato novo (vale.com/brumadinho) deixaram claro, logo de cara, o propósito de monopolizar a informação que lhe diz respeito, rechaçar boatos, evitar ruídos e desmentidos, em geral desmoralizadores. Num resumo, desautorizar qualquer declaração fora do seu domínio.
Foi marcante, nesse sentido, o puxão de orelhas público no respeitado advogado Sérgio Bermudes, que ousou informar à imprensa que a empresa não poderia ser responsabilizada pelo episódio. No entendimento muito correto de que não é hora de provocação, a direção respondeu de imediato no próprio site:
A Vale não reconhece as declarações feitas à mídia pelo advogado Sergio Bermudes e afirma que seu mandato não o autoriza a dar quaisquer declarações sobre a Vale, seja em nome da empresa, seja para expressar a sua opinião pessoal sobre o tema do rompimento da barragem em Brumadinho (MG).
vale.com/brumadinho
A declaração fora de hora do advogado ia de encontro à ótima performance do presidente na primeira hora, em tudo montada para transmitir segurança e assumir responsabilidades. Consciente ou não, sereno e coloquial, muito a propósito numa camisa preta de quem parecia ter saído da cama, Fábio Schvartsman procurava assinalar que ninguém estava autorizado a falar por ele e sua empresa.
Exalava aquele tipo de autoridade de quem já não tem motivos para esconder nada. Objetivamente, teve a sabedoria de não dizer nada além do que era obrigatório saber na hora.
Com a humildade necessária para admitir o que não sabia, escapou da tentação, muito comum de autoridades cobradas numa hora dessas, de fazer elucubrações, entrar na defensiva, transferir responsabilidades ou prometer resultados.
Bem assessorado, com a documentação certa em mãos e certamente experiente na gestão de imagem e de crises, deve conhecer ou intuir o valor da autoridade e da centralização da informação que os manuais mais básicos de comunicação recomendam numa hora dessas.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que despachava rápido pela janela as tantas crises que batiam à porta de seus oito anos de governo, chegou a produzir um decálogo de ensinamentos a respeito, que, em resumo, pode-se dizer que:
A crise tem dono e é do presidente. Ele é a cara dela e deve enfrentá-la e seus ônus, sem segredos e sem delegar responsabilidades. Nunca buscar culpados e e não dar corda a palpiteiros. Desautorizar os que se arvorem a falar por ele, transmitir autoridade e tranquilidade. Escreveu:
Fuja do aliado que quer o sangue do adversário.
A crise de Bolsonaro e Zema
Bem diferente do que protagonizaram diferentes vozes em nome dos governos Bolsonaro e Zema, de Minas Gerais.
Três dos homens mais fortes de Bolsonaro — o vice Mourão, o chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni e o ministro do Ambiente Ricardo — se apressaram a adiantar providências que não sabem se poderão cumprir, a começar pelo afastamento hipotético da diretoria da empresa, por voto de acionista do governo.
Em Minas, Zema transferiu na primeira hora a tarefa de dar coletiva a técnicos. No decorrer dos trabalhos de resgate, vazaram como peneira declarações de dentro do governo ou dos comandantes envolvidos contra os esforços federais para ajudar com os exércitos brasileiro e israelense.
Como quase tudo no serviço público dos governos federal e estaduais, as estruturas de comunicação são inchadas, sem foco e descontínuas, sujeitas às mudanças de estrutura, de política e de humor do governante da hora.
Agrava, no caso de Bolsonaro e Zema, que estejam em início de governo, quando ainda se tateia esse terreno arenoso e é mais complicado domar os falantes sem autorização e unificar o discurso.
Já a Vale, livre da praga da nomeação política sem prioridade de mérito, pelo menos desde que privatizada no final dos 90, certamente que tem estrutura de comunicação antiga, estável e sujeita ao darwinismo que depura a competência com o tempo.
Para dentro, é certo que a Vale não é sucata. Não se chega a segunda do mundo em seu ramo sem se ser estupendamente competente em seus vários braços, o de comunicação inclusive. Ou principalmente.
Se revela tanta incompetência para controlar barragens que matam, tem a ver com suas outras competências, também estupendas, para controlar políticos, governos e seus órgãos de controle. No sentido de testar os limites da lei sobre os cuidados exigidos para preservar a vida.
Sua gestão de crise não a resolve e há um longo caminho a percorrer até se livrar de mais esse peso na sua biografia. Mas é fácil imaginar o quanto tanto a mais ela e seu presidente estariam apanhando da imprensa se estivesse menos competente do que vem sendo,
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