Médicos brasileiros não faltam, mas é difícil acreditar que possam ir para os grotões suprir os 8,5 mil cubanos que podem deixar o contrato do Mais Médicos.
Não devem atender a todas as exigências do edital de convocação do governo Temer, por questões estruturais, sócio-econômicas e, sobretudo, culturais.
São 452 mil médicos no país, segundo estudo atualizado da Faculdade de Medicina da USP, mas 63% estão no sudeste, no centro-oeste e no sul, além de 55% nas capitais.
Enquanto Brasília tem 4,35 médicos por habitante, a média no Maranhão é de 0,87%. Em cidades com menos de 5 mil habitantes, só 0,3%.
Apesar da média nacional de 2,18% médicos por habitante, baixa em relação aos países avançados, a concentração nos estados ricos, para onde vai a maioria dos quase 30 mil que se formam anualmente, já inspirou o MEC a proibir novos cursos de Medicina. Entre outras razões, certamente porque, dos que se formaram nos novos cursos criados no interior, desde 2009, 93% foram para os grandes centros.
Devidamente distribuído, o número daria para atender até as deficiências de Cuba, mas não vivemos numa ditadura, e a maioria tem o direito de não quer se deslocar. Mas que direito, o desejo.
Não só porque não confiam nas prefeituras, que pagam mal e oferecem péssimas condições, mas porque são/somos de outra cultura que nos empurra atrás do sucesso nos centros grandes.
Jornalistas, advogados, engenheiros, artistas e prostitutas, não necessariamente nessa ordem, querem os centros grandes como medida de crescimento profissional. Que é mais determinante do que qualquer tanto que se ganhe nos fundões do país, onde o máximo que se pode almejar é casar com a filha do prefeito.
Nas cidades médias como a minha Muriaé, na zona da Mata, onde se é possível montar um consultório ou uma clínica com os amigos e gozar de certo status social, não faltam médicos. Mas o mesmo não se pode dizer de Miradouro, Eugenópolis ou Patrocínio, a 30 quilômetros ou menos de distância, para onde não se deslocam nem para ganhar bem.
Ou se deslocam, concedem a esses municípios miseráveis a graça de sua presença em apenas um dia da semana.
Médicos brasileiros como americanos
Apesar de nossa miséria continental, nossa cultura é de viés norte-americano, competitiva. Parecemos mais com a Índia ou com países africanos de castas e guetos do que com a Europa do bem estar social. Menos ainda com uma Cuba de pretensões de igualdade totalitária.
Nós classe média, em que os médicos estão incluídos, vivemos num tipo de camarote, no sentido que lhe dá o americano Michael J. Sanders, autor de Justiça – O que é Fazer a Coisa Certa e O Que o Dinheiro Não Compra.
Nesses livros, produto de suas palestras de sucesso em Harvard, ele cunhou a expressão “camarotização da vida pública” para designar o novo mundo de desigualdades produzido pela distância entre os que podem e os que não podem pagar por direitos básicos, como Saúde, Educação e Segurança.
Ao tratar do livro e suas relações com o problema dos Mais Médicos, escrevi em 2013 o seguinte artigo: >>> Artigo: Vida de médico em camarote não vai onde os cubanos estão
Nos seguintes termos:
“Como a maioria das pessoas que me cercam, tenho plano de saúde, escola privada para meus filhos e porteiros para garantir segurança no meu prédio. Vivo, como a maioria do meu meio, numa espécie de camarote que me permite acesso com mais facilidade a serviços restritos para a maioria da população.
Nos EUA, que nos inspira em tudo, a coisa chegou a tal ponto que médicos de boutique têm tabela diferenciada para fornecer ou não o número de seu celular ao paciente. Se o cidadão quer um atendimento vip, personalizado, com direito a acionar o profissional quanto tiver uma dor no calo no fim da noite de um domingo, ele paga por isso.
Ainda não chegamos a essa sofisticação por aqui, como escrevi em neste artigo anterior. Mas é mais ou menos o que fazem os profissionais que cobram por fora por procedimentos garantidos pelo SUS ou pelos planos de saúde.
O argumento em geral é de que há o profissional de plantão disponível para o atendimento, mas, se o paciente quer atendimento personalizado, precisa pagar por isso.
Nessa nova visão de medicina, não é obrigação do médico ir aonde o paciente está, independente da hora e do seu estado, mas sim quando e como lhe for conveniente, dependendo do que resultado financeiro. O médico antigo que corria para socorrer alguém em casa é tão fora de moda quanto seringa de vidro.
É uma nova ética medica que torna também antiga a ideia de sacerdócio e obsoleto aquele juramento solene feito na formatura, em que o jovem formado se compromete ser fiel “aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência”. A caridade, pelo menos, já não cabe no caso.
Mas não se trata de privilégio da classe médica.
Nessa nova ordem, jornalistas, advogados, engenheiros e tantos outros estão tentando ganhar por fora da missão que juraram nesse admirável mundo novo em que tudo pode ser comprado e vendido. Seja misturando jornalismo com marketing, no caso dos primeiros; defendendo traficantes no dos segundos; inventando aditivos nas obras públicas, como fazem os terceiros.
Tem a ver também com a consolidação do capitalismo e da competitividade como solução de felicidade.
Todo mundo quer ter o seu negócio, o seu próprio consultório ou escritório de ar condicionado, o direito de trabalhar pouco, ganhar muito, viajar para lugares chiques, consumir tudo o que estiver ao alcance e gozar de todos os prazeres desse mundo tão cheio de apelos.
Temos tendência a ser mais intolerantes com com os médicos, negar-lhes o direito de embarcar nesse camarote. Porque a displicência deles causa estragos mais visíveis e irremediáveis, como a morte de um inocente. Não se pode dizer o mesmo, de forma visível e imediata, de quem escreve uma matéria manipulada, defende um traficante ou adultera uma obra.
Isso tudo para dizer que entendo perfeitamente por que os médicos brasileiros não querem ir para os confins do país atender pobres por um salário fixo, como aceitam ir os cubanos, e dar às costas às infinitas possibilidades que estão se abrindo na roda da fortuna desse mundo novo, num país que vai se inserindo no panorama internacional.”
Se somos assim, por que os médicos seriam diferentes?
O que não podem, porém, como eu, você e todos nós da classe média camarotizada, é querer proibir os outros de irem e nem usar o projeto Mais Médicos ou a ruptura de Cuba como desculpa para bater no governo. Seja o de Dilma que o implantou, o de Bolsonaro que ameaçou rompê-lo ou o de Temer, que está pagando a conta.
É um problema compartilhável.
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