Sempre me incomodou a cobertura de livros dos jornais.
Um pouco porque não dá para ler os principais lançamentos da semana e muito porque a tarefa sempre foi entregue a literatos ou acadêmicos, não jornalistas, acabou por ser um convescote de uma gente elitista que fala de livros como se fala de vinhos raros.
Torcem o nariz para a lista de best-sellers que o povo gosta como os someliers que torcem o nariz para os vinhos de supermercado, quando não promovem o livro/vinho que o amigo ou a editora amiga enviou.
Livros como Harry Porter, Senhor dos Anéis ou Games of Thrones nunca tiveram qualquer chance, a não ser como curiosidade estatística. Paulo Coelho, então, que dá autógrafos como popstar em alguns países do mundo, nem pensar. Devem seus sucessos à sabedoria popular.
A cobertura de cinema já foi mais ou menos assim. Virou mandamento de que não se deveria correr o risco de ir a filme elogiado pela crítica que preferia o chatíssimo cinema francês ao americano. O elitismo chegou a tal ponto no tempo do Cinema Novo, que Millôr Fernandes cunhou a frase que resumia o descompasso entre os valores dos críticos e da plateia: “o filme não presta, mas o diretor é genial”.
Isso vem ao caso pela ideia de “bolha” que o economista Paulo Guedes, guru de Jair Bolsonaro, jogou no ar, na última semana.
Ao tentar explicar ao repórter de Veja o que um PhD de Harvard viu num brucutu como o capitão do exército, ele disse que “saiu da bolha”. No sentido de que a pregação do capitão pelo direito à vida e à propriedade o fez deixar de ser pautado pelo pensamento hegemônico de uma imprensa que defende pautas respeitáveis como aborto, igualdade de gêneros e direitos humanos, enquanto o cidadão não sabe se voltará vivo para casa.
— O que significa sair da bolha? — perguntou o repórter.
— A bolha é São Paulo, Rio, Florianópolis. Somos nós, a Folha de S. Paulo, a Globo, a Veja. A bolha diz assim: “Ah, esse cara é chato, disgusting (repugnante), tosco”. A bolha pensa em direitos humanos, que são demandas legítimas, corretas e sofisticadas da sociedade. Só que o povo está lá fora gritando socorro porque não sabe se levará um tiro amanhã. Então, quando falei com ele, tudo ficou muito claro para mim.
Na mesma semana, Ciro Gomes havia dito numa entrevista a O Globo que, quando faz reuniões com a fina flor da intelectualidade carioca, na zona sul, só querem discutir temas etéreos como aborto e liberação das drogas.
— E o Rio de Janeiro, maior concentração de artistas por quilômetro quadrado, de intelectuais, de engenheiros, uma elite exuberantemente linda, criativa e olha a situação de vocês. Isso por causa do gueto da Zona Sul. Eu vou para as reuniões aqui (no Rio) e as pessoas não querem falar de emprego, de salário. Completamente voando da agenda do povo, querem exigir de mim compromisso de descriminalização de droga, porque “eu gosto de fumar minha maconha’.
Essa bolha, que trata os problemas reais do dia a dia que turbinam Bolsonaro em panoramas de helicóptero e aprofunda a discussão das pautas intelectuais, é a mesma que generaliza a paixão dos eleitores nordestinos por Lula sem entender/explicitar suas motivações.
Estive há uns três anos em São José do Seridó, a 250 quilômetros acima de Natal, no agreste do Rio Grande do Norte, onde a população de 4,5 mil almas era toda bem assistida por empregos na prefeitura, em órgãos do Estado ou União, pequenas indústrias subsidiadas pelo governo, por aposentadorias — também da prefeitura, do Estado ou da União — ou por benefícios do Bolsa Família.
— Pode falar o que for de Lula, mas, antes dele, isso aqui era pura fome e saque a supermercados — me resumiu o prefeito, do então PMDB.
O que, não fosse a bolha, seria fácil explicar os seus 40% nas pesquisas, mesmo preso, em boa parte graças ao voto fiel da região onde, dependendo do Estado, chega a ter 90%. Ou o primeiro lugar de Jair Bolsonaro no sudeste, com mais de 20% aparentemente consolidados.
A dor da gente não sai no jornal, como diria o velho samba. Ou como os best-sellers e os filmes de que o povão gosta, as razões de seus fãs são mal interpretadas, quando não esnobadas.
Deixe um comentário