Não se espera que todo mundo tenha instinto de comunicação e atue para obter efeitos favoráveis na opinião pública ou próxima, entre amigos e aliados.
Mas se espera aquele resquício mínimo de cuidado com opiniões e gestos para não afrontar o consenso e a unanimidade, ainda que, como disse Nelson Rodrigues, toda ela é burra.
É preciso ser um Nelson Rodrigues e ter compromisso apenas com sua obra e a imortalidade, porém, para não temê-la.
Até por instinto de sobrevivência, premido pelas circunstâncias, o sentido gregário de pertencimento ao grupo ou mesmo medo do julgamento do futuro, homens públicos reduzem a octanagem de suas divergências para se adequarem ao espírito do tempo e não nadarem contra a correnteza da história.
Gilmar Mendes, não.
Já lá se vão uns 20 anos, desde que indicado por Fernando Henrique Cardoso para o STF, que o ministro não recua uma vírgula de posições impopulares na contramão do desejo da sociedade, quando temas polêmicos exigem sua decisão determinante.
Soltou um bocado de gente, contribuiu para abater operações históricas da Polícia Federal, e foi decisivo para mandar descansar em casa um mone de figurões.
Entre eles, o médico estuprador de pacientes, Roger Abdelmassih, grandes barões implicados em grandes operações como Daniel Dantas e Eike Batista, o mentor intelectual dos desvios do Mensalão que continuou operando no Petrolão, mesmo preso, José Dirceu.
Deu votos que estagiários de Direito duvidariam, como o que absolveu a chapa Dilma-Temer contra provas acachapantes, afronta a jurisprudência do Supremo por prisão após julgamento em segunda instância e, nesta semana, soltou mais uma penca.
Foram nove presos enrolados até o pescoço nos desvios do setor de transporte de ônibus do Rio de Janeiro. Desafiado pelo juiz local que devolveu dois deles às grades por outros motivos, voltou a mandar soltar.
Tem orgulho de dizer que não leva em conta a opinião do meio. Recorda sempre a frase de Rui Barbosa de que juiz não pode ser covarde e já respondeu a um repórter que não tem qualquer problema de sono com suas decisões:
— Você já me viu preocupado ou depressivo? Só fico chateado quando me imputam coisas que não fiz — disse na entrevista a Veja que está nas bancas.
Poder político e na imprensa
Autossuficiências olímpicas desse porte são fundadas na coerência que emana respeito pelo que sugere de uma ética inabalável, afiada em princípios sólidos e imutáveis. É difícil contestar e menos desrespeitar pessoas assim.
Em Gilmar Mendes, seria o primado da presunção de inocência levada às últimas consequências que pode soltar corruptos e estupradores de provas abundantes enquanto não restar um último recurso. Mesmo que assentado em firulas jurídicas de que os advogados chicaneiros lançam mão até a última sessão do Supremo.
A ideia de que Gilmar Mendes é coerente tem resistido apesar de algumas contradições mais gritantes recentes.
Como a que fulminou a nomeação de Lula para a Casa Civil sem dar tempo de presumir a inocência de Dilma em nomeá-lo, o voto final para arquivamento do processo de cassação da chapa Dilma-Temer contra a abundância de provas que ele mesmo havia mandado apurar e a desautorização seguida do juiz Marcelo Bretas, do Rio, depois das libertações reincidentes.
Em resposta a um pedido do juiz de orientação sobre seus limites no caso, ele respondeu que não havia o que esclarecer sobre a competência do magistrado para prender réus por motivos novos. Mas bastou o juiz prender, para ele de novo soltar.
A certa altura, estranhamente, ele sobrepõe elementos de circunstância em favor de seu voto — como disse e repetiu contra a ruptura do governo Temer no julgamento da ação no TSE — mesmo que sua coerência esteja assentada, como gosta de pregar, na estrita obediência da lei.
E seja capaz de assumir algo bastante discutível de que apadrinhar a filha do réu que soltou no Rio seja indicativo de proximidade que suscite suspeição.
Talvez essa coerência possa ser entendida menos no campo no campo da ética que da antropologia.
O antropólogo Roberto da Matta tentou em O Globo uma análise dessa mistura da ética privada e pública, que é bem da natureza dos nossos trópicos desde a compreensão da Casa Grande e da Senzala.
Em Gilmar Mendes, acrescento, seria mais um caso de senhor do engenho afinado com seus pares do andar de cima, para quem soa sempre estranho manter homens de bem presos apenas por desvios que podem ser explicados até a última instância.
Ou talvez, mais simples, como um caso apenas de falta de oposição, de uma contestação corajosa de suas contradições.
Interlocutor turrão que não tem medo de bater de volta, altamente preparado para cercar seus votos de legalismos de difícil contestação e relevar com igual competência suas relações discutíveis e seus comentários de circunstância, provoca uma deferência respeitosa.
Que começa nos seus pares, passa pelo establishment político e chega à grande imprensa. Se teve alguma oposição, foi na minoria barulhenta e irrelevante das redes sociais que tem poder de avacalhar mas não de influir.
Pode ser que agora, tendo chegado ao ponto em que até a revista Veja o coloca na capa como inimigo do Brasil, no rabo dos protestos que passam a deixar suas contradições no mínimo constrangedoras, ele possa se mexer em sentido contrário.
Não é fácil acreditar que possa, mas é um caso interessante para se continuar tentando entender.
Ricardo Kertzman diz
Excelente, Ramiro! Gilmar costuma ser tecnicamente imbatível em suas decisões, mesmo que nos leve ao desespero e irritação extrema. Só não entendo, sinceramente, sua fixação por não abrir mão de certos casos, como este envolvendo o pai da ex-esposa do sobrinho de sua mulher. Agindo assim, acredito que atraia muito mais descrédito que admiração.
Abração!