Quando chegamos à cozinha do Palácio, o corpo já estava putrefato.
Sir Sherlock Herman Benjamin contornou a bancada de mármore cheia de planilhas para se acercar do corpo coberto de sangue já escuro e ressecado pelo tempo. Afastou do nariz o lenço com que se protegia do cheiro nauseabundo.
— Tem jeito de campanha — disse, com seu talento dedutivo infalível.
— Sim — confirmei, também afastando o meu. — Por isso, o apelido dele, Campanha. Campanha Eleitoral.
Ele afastou com cuidado a cadeira presidencial quebrada que havia servido de arma para destroçar a cabeça do morto, uma plasta de sangue seco. Afastou de novo o lenço para emendar com o mesmo talento:
— Prenda a dona da casa. Foi ela.
— Sim — confirmei. — Já sabemos.
Ele me mediu dos pés à cabeça quando fazia para gastar mais do que o tempo necessário de entender minhas intenções. Olhou para os armários até o teto, os copos ainda sujos sobre a pia, e completou.
— Prenda também o mordomo.
— Também já sabemos que foi ele — devolvi, temendo sua reação. — Participação menor, mas também tem culpa.
Sir Herman voltou a me medir de baixo acima e caminhou pelo ambiente, a capa preta dando-lhe um ar estranho de coveiro a postos para preparar os funerais.
Foi até a bancada no centro, correu os dedos sobre as pilhas de papel quadriculado. Se interessou por umas marcações em vermelho. Afastou o lenço.
— Delações — deduziu.
— Sim — emendei. — Do Barão Odebrecht. — E antes que recebesse no peito aquele mesmo olhar inquisidor, contornei a bancada até o cadáver.
— Essas planilhas provam que tinha muito dinheiro em jogo — ouvi-o dizer.
Mas só apontei para o chão. Também afastei o lenço.
— Está vendo esse guardanapo debaixo da boca do defunto?
Ele caminhou de má vontade. Ficou maior com sua capa preta e seu jeito de coveiro esquálido quando chegou perto.
— É onde tudo começou — ele deduziu.
— Sim. — Afastei o lenço. — Recebeu dinheiro escondido e a madame sabia.
— E o mordomo — ele completou, sem me dar tempo de argumentar, e apontou para as planilhas, para fechar o raciocínio: — Começou a aqui, recebeu mais depois, o volume cresceu, foi preciso ter um controle mais sofisticado, a coisa se agravou, sabia demais, tiveram que matá-lo.
Agora, eu é o que medi da ponta da capa ao topete. Mais para tatear sua reação ao que eu precisava falar do que para contestar a autoridade que nunca neguei ao longo de nossa velha cumplicidade na descoberta de crimes insolúveis.
Voltei para onde eu estava, liberei corajosamente o nariz e cruzei os braços. Medi as palavras:
— É aí que eu precisava chegar. — Olhei para os papéis, olhei para o chão, olhei para o teto e para qualquer outro lugar que me desviasse dos olhos dele. — Nós temos que desconsiderar as provas sobre a bancada.
Só o ouvi se aproximando devagar, agora a voz um tanto ameaçadora e um tanto prejudicada pelo lenço sobre o nariz.
— Você está me dizendo que vocês já sabiam de tudo e que só…
Me afastei para evitar encará-lo. Falando:
— Sim, sim, me desculpe. Já sabíamos quem matou, porque matou, o quanto de dinheiro estava envolvido, tudo, tudo. — Parei para respirar, ainda de costas para ele. — Mas precisávamos eliminar algumas provas.
Senti suas duas mãos no meu ombro. Me virou para me encarar. Foi só o tempo de cobrir o nariz de novo:
— Você está querendo me dizer que você me trouxe aqui para corroborar a tese de vocês de que já sabiam de tudo e só queriam que eu coonestasse?
Respirei o mais fundo que pude, agora enfrentando os olhos dele. Só o lenço no nariz atrapalhando a conversa.
— Mais do que isso — gaguejei. — Nós queremos que o senhor salve o mordomo.
Ele espremeu todos os músculos da testa, como não estivesse reconhecendo o amigo de décadas. Fulminou com o jeito curto com que costuma fuzilar seus inimigos.
— Elabore.
Respirei fundo de novo.
— Nós precisamos que o senhor deduza só a partir do guardanapo debaixo da boca do defunto. Até ali, o mordomo pode alegar que estava de férias, e só colocaram o guardanapo para comprometê-lo.
Ele, ainda duro:
— Tem prova?
Gaguejei:
— Estava servindo champanhe no jatinho do amigo da madame.
Ele deixou enfim cair a mão que retinha meu ombro. Levou-a ao queixo para tentar uma síntese.
— Quer dizer que a madame e o mordomo arrebentaram com esse tal Campanha porque ele recebeu do Barão Odebrecht mais do que o combinado com eles e vocês querem que eu deduza que o mordomo não participou?
Balanço a cabeça. E só o tempo de afastar o lenço:
— Mais ou menos isso. Por favor.
Agora, ele é que respirou fundo. Voltou a caminhar, olhando para o chão, como que para pesar meus argumentos e se valia a pena arriscar nossos anos de companheirismo.
— Mas foi você que sempre disse que não podemos separar cúmplices… — divagou.
— Sim — deixei escapar, em suspenso.
Ao fim de um tempo longo o suficiente para ter avaliado todos os anos em que passamos juntos, soltou um suspiro vulcânico e se encaminhou para a porta. Só se virou na saída para soltar a sentença no seu jeito de encerrar conversas que não aprova.
— Me inclui fora dessa — resumiu.
Só reparei na bainha de sua capa esvoaçar no giro com que desapareceu pela porta de saída.
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