Volta e meia tenho bons motivos para pensar em como que um sujeito, um só, por um problema de comunicação, faz um estrago oceânico numa corporação, numa cidade, num país.
- Nos meados dos 90, um amigo foi procurado pelo presidente de uma associação de bairro interessado em influência junto a uma grande empreiteira para evitar, amigavelmente, que um projeto imobiliário mastodôntico já aprovado derrubasse três árvores.
Meu amigo procurou o chefão, que rodopiou na cadeira giratória de espaldar alto, tirou um trago longo do seu Havana, olhou para o teto, respirou impaciente e devolveu:
— Quer saber? Manda ele tomar no c*!
Alguns meses depois, esse amigo leu numa notinha escondida no meio do noticiário de cidades que, por denúncia da associação de moradores, o projeto havia sido embargado. Levou 12 anos para sair do papel. - No início de 2005, por duas vezes, o deputado Roberto Jefferson procurou o presidente Lula para adverti-lo das patranhas de seu chefe da Casa Civil, José Dirceu. Além de ter dado calote de uma dívida de campanha e estar comprando deputados de seu partido para miná-lo, não atendia seu principal pleito, a troca de um diretor de Furnas.
Mesmo com ordem do chefão, José Dirceu barrigou o pedido e — não se sabe até com quanto de contribuição de Lula — tratou de isolá-lo e manipular suas cordas para que o então escândalo dos Correios, já em maio de 2005, fosse jogado no seu colo.
No início de junho, soube que o ministro da Justiça Márcio Thomas Bastos iria à TV prometer a cortina de fumaça de que o governo faria uma devassa nas estatais comandadas pelo seu PTB. Ligou então para o chefe da Casa Civil e ouviu que o governo não podia fazer nada.
— Olha o que você vai fazer, hein? — completou do outro lado da linha.
No dia seguinte, Jefferson ligou para a jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S. Paulo, e detonou o que viria a ser conhecido como Mensalão. - Entre 2012 e 2014, o auditor fiscal da Superintendência Federal da Agricultura, no Paraná, Daniel Teixeira foi sendo afastado de suas principais funções a cada vez que incomodava sua chefona, Maria do Rocio Nascimento, ao endurecer a mão com frigoríficos que burlavam exigências sanitárias.
Acabou ficando responsável pela fiscalização de apenas dois deles, Peccin e Souza Ramos. Meticuloso, viu nas planilhas que o número de carretas que entravam com carcaça de frango era superior ao razoável do que saía como carne de qualidade embalada.
Como não encontrou eco interno com suas advertências e percebeu que colegas incômodos como ele vinham sendo transferidos para outras funções ou cidades, resolveu procurar a Polícia Federal. Que deu na operação Carne Fraca, de 307 mandados judiciais, 22 prisões e um abalo sísmico numa das poucas indústrias nacionais que tinham respeito internacional.
Poder
Imagino que pessoas como aquele presidente da associação de bairro, Roberto Jefferson e Daniel Teixeira possam ter se passado como o sujeito chato e insistente que exagera suas demandas, tem dificuldade com autoridade e não sabe convencer o outro de que suas perdas de longo prazo podem ser maiores que os ganhos eventuais no curto.
Ou, bem verdade, tenha trombado numa barreira de comunicação em que não se sente mais ouvido e buscado ajuda externa como única saída para salvar o que lhe resta de dignidade.
Ocorre porque, se há chatos desse tipo que movem o mundo, há os arrogantes do outro lado da mesa que perdem a noção das circunstâncias.
Imagino que José Dirceu e Maria do Rocio, como o chefão da empreiteira, também tenham se deixado rodopiar na cadeira giratória de espaldar alto, olhado para o teto e disparado um suspiro impaciente acima da cabeça dos mortais ao redor.
É bem o tipo dos que se sentem num trono a alguns metros do chão, diante do qual todos os interlocutores são iguais e obedientes. O incômodo, não o sendo, é alguém que se deve mandar tomar naquele lugar.
São motivados por muita coisa, inclusive corrupção mesmo, mas também por um encantamento de poder que leva à autossuficiência, dela à arrogância e daí à surdez incapacitante para se antecipar aos problemas que funcionário insatisfeito pode causar.
Depois se arrependem.
Relações
Meses depois, com a obra já embargada e uma dúzia de advogados batendo cabeça tentando reverter o embargo nos órgãos ambientais, o chefão da empreiteira procurou meu amigo, querendo reparar o estrago da relação trinca.
No meio um cafezinho de fim de tarde, curvado sobre a mesa, esfregando as mãos, uns quilos mais afável do que no tempo em que rodopiava na cadeira de espaldar alto, quis saber se ainda dava para conversar:
— E aquele sujeito da associação de bairro? Ainda dá para conversar?
— Acho que não — meu amigo devolveu, cheio de maldade. — Ele não gostou do recado que você mandou.
— Qual?
— Aquele: pra ele tomar no c*.
valdir diz
Como não conheço nenhuma das pessoas referenciadas como possíveis chatos, autoriza-me a lógica a seguinte indagação: será que entregaram a rapadura, ou falcatruas, porque não lograram iguais vantagens? Não conjugar com a hipótese me induz acreditar em falácia política.
Cristiano Marques diz
São casos diferentes.
Roberto Jeferson, achacador-mor, este sim é arrogante e quis salvar a própria pele num caso irrecuperável, a corrupção escrachada nos Correios.
São os meandros da política.