Em maio de 2014, o ministro Teori Zavascki mandou soltar todos os 12 presos sob a guarda de Sérgio Moro, na carceragem de Curitiba.
Jogava um balde água fria no grupo de procuradores e delegados da Lava Jato que, em dois meses, haviam prendido o doleiro Alberto Youssef, depois o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e puxado o fio do maior escândalo de corrupção da história moderna.
Dois anos depois, em março de 2016, avocou a Brasília todos os processos envolvendo o ex-presidente Lula. Pretendia enquadrar o juiz que havia acabado de liberar áudios de interceptações telefônicas que indicavam obstrução de justiça por parte do ex-presidente.
Nos dois casos, ele:
- Alegou usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, na medida em que as gravações flagravam conversas com autoridades de foro privilegiado:
— Juiz é para mediar conflitos, não para criá-los — disse numa das raras vezes em que deixou transpirar uma opinião em público. - Defendeu como um leão as prerrogativas do juízo a que servia.
- Preservou seus valores. Um conservadorismo ferrenho que reverenciava com a tradição e namorava com a complacência de um modelo antigo que não tem o hábito de punir poderosos e nem prestar contas de seus atos. Definitivamente, o modelo de transparência do jovem juiz apaixonado pela Operação Mãos Limpas da Itália e tudo o que ela conseguiu mobilizando a opinião pública não combinava com sua personalidade.
Mas, também, colocou em sério risco a operação. E também, nos dois casos, voltou atrás.
Para isso pesou a perspicácia de Moro, que o confrontou como nenhum outro juiz fizera em relação a um ministro de terceira instância e com uma elegância demolidora que poucos conseguiriam. Como sobre parte dos 12 presos que incluíam Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef pesavam indícios de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, escreveu:
Subscrevo este ofício, solicitando, respeitosamente, esclarecimentos sobre o alcance da decisão, já que não foram nominados os acusados que devem ser soltos e os processos que devem ser remetidos ao Supremo Tribunal Federal. Assim, muito respeitosamente, indago a V. Exa. se este feito de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro também deve ser remetido ao Supremo Tribunal Federal e se devem ser colocados soltos os acusados desse feito.
Aura de poder
Daí que tive em muitas vezes a tentação de achá-lo um reacionário a serviço do atraso e dos interesses do status quo de impunidade que representava e traduzia.
E outras tantas por reconhecer nele o servidor público de alta responsabilidade, severo na defesa dos princípios de justiça que consolidou numa carreira sem restrições.
Difícil dizer o que havia de cálculo ou convicção ou se operava com malabarismo sofisticado para calibrar suas decisões com as implicações e as contingências de seu cargo, de sua história, de seu tempo.
No início de maio passado, quando acabara de afastar do exercício de qualquer cargo público o presidente da Câmara Eduardo Cunha, depois de uma série de outras decisões difíceis que implicavam todo o espectro de poder de Brasília, escrevi sobre o grande conflito moral de homens em sua posição.
Tinham que calibrar a isenção de uma vida com a tentação de ser grato ao padrinho que o nomeou. No caso dele, à madrinha Dilma Rousseff, também envolvida nas denúncias sobre as quais lhe competia arbitrar.
Janot, Zavascki e como calibrar o peso da gratidão aos padrinhos é o nome do artigo, uma tentativa de embrenhar na mente dos dois principais personagens do Judiciário no momento, ambos acossados pela responsabilidade de atender o interesse público e fazer história, carregando ao mesmo tempo nos ombros o preço de ser ingrato. Mais do que isso, de ser considerado traidor.
Citei a melhor das frases de Alexandre Dumas (“Traição é uma questão de datas”) para mostrar como o conceito de trair pode variar dependendo das circunstâncias, de como o traidor de ontem pode ser o herói de amanhã, dependendo de sua competência para ser ingrato quando os erros do padrinho constituem um fardo difícil de carregar.
Um trecho:
Expectativas de troca e afinidades não explicam tudo, mas é da natureza do homem ser grato ou ingrato na hora certa.
Uma questão de datas.
A crônica política é cheia de cadáveres provocados por ingratos clássicos, em geral os vices de prefeitos, governadores e presidentes que aguardam uma hora de fragilidade para morder o calcanhar de quem lhes deu a oportunidade. Para ficar nos exemplos mais recentes, Itamar Franco em relação a Collor, Michel Temer em relação a Dilma.
A questão é calibrar.
Diante de um favor tão grande, cuja retribuição dependa de um malabarismo descomunal do juiz para respeitar a lei e a pressão de quem o indicou, o melhor mesmo é ser ingrato na medida certa.
Homens públicos de personalidade forte, grande preparo técnico, espírito público e noção de sua responsabilidade histórica são capazes de exercer suas, digamos, afinidades com aquele mínimo de dignidade que o homem não pode negociar.
Buscam os melhores argumentos na gama de possibilidades do vasto cipoal da legislação para aprovar ou rejeitar, dependendo da demanda. Levam em conta, além do respeito à lei e da pressão do padrinho político, a pressão da sociedade e o julgamento implacável da História.
Homens de baixa envergadura, de currículo, preparo e espírito menores, um tanto fascinados pela aura de poder descomunal que uma cadeira do Supremo confere, tendem a um adesismo simplista com alto risco de ridículo. Fazem contorcionismos amadores que, quando não caem no ridículo, sacrificam o país e a própria biografia.
Ao final, acabei por incluí-lo entre os ingratos de alto nível da mais alta Corte do país, mais preocupados com o testemunho da opinião pública e da História.
Os deslizes de gratidão disfarçados em votos complexos de centena de páginas não ofuscam o conjunto geral de ingratidão a serviço do país.
Naquele jeito sóbrio, recatado e intransigente, que um dos grandes implicados de suas decisões, Romero Jucá, chamou de “muito fechado”, parece ter sido o maior dos ingratos na hora certa, colocando o país na maioria das vezes acima de suas tentações de gratidão.
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