Obra das obras de ficção científica, a estupenda Black Mirror explora o risco de novos frankensteins e controles totalitários.
Imagine o pior:
- Você poderá encomendar um namorado que já morreu e poderá ser julgado e julgar todo mundo a todo momento Imagine que o governo criou enxames de drones de abelhas para ajudar a equilibrar o ambiente em áreas em que elas são escassas e um racker consegue invadir o sistema e usá-las para matar pessoas.
- Depois pense num mundo em que é possível o implante de um chip atrás da orelha capaz de gravar tudo o que se é vivido e ser acessado para checagem e/ou chantagem.
- Ou num tempo em que será possível julgar cada pessoa instantaneamente, em casa, na rua, na loja, com um clique no celular, de forma a estabelecer diferentes padrões de comportamento e castas por ordem de aprovação social.
Isso ainda é pouco. O primeiro ministro ou o presidente da República poderá ser desafiado a transar com uma porca em cadeia nacional para atender um chantagista, um personagem criado em redes sociais pode ser eleito deputado e criminosos poderão ser descobertos e torturados com realidades virtuais tão torturantes quanto a pior cadeia de Curitiba.
O que assusta na estupenda Black Mirror, série inglesa ampliada em novos episódios pela Netflix, é que tudo é possível e da pior maneira com os atuais avanços tecnológicos.
Encruzilhada da internet
Como em toda grande distopia sobre os perigos de as coisas chegarem a uma tragédia se continuarmos agindo como agimos, essa série de 13 capítulos em três temporadas faz um exercício altamente inquietante do futuro aterrorizante que nos espera dado o atual estado de coisas.
O criador e roteirista britânico Charlie Brooker, um satirista de toques surreais, partiu de uma ideia simples: o que aconteceria se levássemos ao paroxismo certos comportamentos que já nos assustam hoje na internet, de submissão cega aos recursos de interação, registro de memórias, julgamento instantâneo, controle e vivência virtuais, invasão de privacidade, mobilização de massas.
Toca com inteligência naquele sentimento de medo recorrente do ser humano diante de uma nova tecnologia, uma nova descoberta da ciência. Foi assim com a bomba de neutrons, a pílula anticoncepcional, o bebê de proveta e tudo o que passou a sensação de que o homem estava brincando de Deus para reinventar o que estava estabelecido.
Da exploração desse medo surgiram livros fundamentais para compreender o presente a partir de uma especulação fantasiosa e não raro pessimista do futuro. Como Frankenstein (Mary Shelley), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 2001 – Uma Odisseia no Espaço (Arthur Clark), O Planeta dos Macacos (Pierre Boulle), O Caçador de Androides (Philip Dick), Eu, Robô (Issac Asimov) ou 1984 (George Orwell).
E agora, Black Mirror, de longe o melhor que já fez para traduzir nossa atual encruzilhada. Com a extraordinária capacidade de explorar não uma, mas um monte de invenções simultâneas que surgem e nos assustam a cada clique.
Chat e conversa robótica
Como todas e possivelmente porque a exploração do medo é sua matéria, é também pessimista, com pouco espaço para a esperança e a poesia, embora haja e com traços igualmente angustiantes.
Num episódio aterrorizante, a moça grávida perde o namorado num acidente e, no desespero, se rende à oferta de um novo serviço que lhe permite conversar com ele num chat alimentado do cruzamento de tudo o que ele postou em vida. No limite, querendo mais do que a conversa virtual altamente verossímel, ela encomenda uma cópia do namorado com o alto grau de semelhança que se imagina possível pelos níveis atuais de desenvolvimento da robótica.
Claro que, apesar da semelhança, ele só responderá a estímulos programados pelo conhecimento que o sistema reuniu de sua vida virtual. E, por mais que ela tente se enganar, vai ter que conviver com alguém que não respira quando dorme, que não morre e que obedece a suas ordens sem aqueles conflitos, mesmo que mínimos, que são o tempero, o risco e a grandeza da interação entre humanos.
Ele é um Frankenstein moderno, da mesma forma que o episódio das abelhas lembra Os Pássaros de Hitchcock e a maioria dos episódios de controle sem limite da vida pública ou privada remetem um 1984 levado à última potência.
Quase uma obra das grandes obras de ficção científica esse seriado, que não por acaso chama negro o espelho em que se reflete. Para se levar num chip atrás da orelha.
Veja os livros citados:
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