O filme A Rainha, de 2006, conta as patranhas da rainha Elizabeth ao negar os protocolos de um funeral real à nora que detestava.
A princesa Diana havia morrido fugindo de paparazzos, num acidente dentro de um túnel em Paris, depois de uma noitada com o namorado árabe e uma vida meio mundana de plebeia que, na cabeça da soberana, desonrava o trono.
O problema é que a população fica do lado da morta e a soberana mergulha no fosso existencial de quem, pela primeira vez, se descobre odiado pela maioria.
Helen Mirren, vencedora do Oscar pelo papel, desenha em todos os traços fortes do rosto vincado a descida da imponência soberana ao cadafalso existencial.
Nas mãos do grande roteirista Peter Morgan (O Último Rei da Escócia e Frost / Nixon), entretanto, o que era para ser um mexerico de alta classe virou um denso drama político sobre o momento perigoso em que o governante, aferrado a suas idiossincrasias, perde a noção da realidade e cria uma crise institucional, de onde só vai sair com ajuda externa.
O primeiro-ministro Tony Blair (Michael Sheen, também ótimo) percebe a tempo o descompasso e, com a habilidade de súdito que precisa colocar o soberano no lugar, a conduz ao reencontro com a realidade e a empatia popular.
Parece com alguém? Ou alguéns?
As grandes manifestações de 15 de março contra o governo me remeteram a esse grande filme de Stephen Frears e ao cadafalso existencial do PT e seus líderes, Dilma e Lula.
Pela primeira vez em sua existência, desde o comício das Diretas em 1984, o partido ficou do outro lado da rua, preocupado em negar a onipresença da grande massa que não mais lhe ouve.
Ela foi ao fundo de seu fosso de onde só começou a se mexer graças à habilidade de um conselho político mais heterogêneo e atento à voz das ruas.
Lula? Rainha Elizabeth a seu jeito, tentou negar a realidade achando que seu exército de sem-terras e sindicalistas mobilizados a ônibus e pão com mortadela iriam devolvê-lo ao trono. Do fundo também de seu fosso, vai tentando sair com injeções de autocrítica que as manifestações ou reuniões pífias de seu partido lhe injetam.
O problema dos três é que ainda se debatem sob o peso de suas crenças e fantasias.
Ela, até porque tem o ônus de responder seus atos, vai se adaptando. Os outros dois ainda resistem. Nada mais fora de lugar que alguns de seus líderes se atracando em discursos de golpismo e conspiração das elites ou em pautas que a massa não pediu.
A Rainha deixa entrever que o sistema monárquico não é inútil como parece. A soberana encarna um poder consentido, real, por força divina ou dos costumes, que traduz o senso comum das massas e serve de contraponto à sanha dos políticos, uma variação do sistema de contrapesos ao das democracias presidenciais, representado nos três poderes. Não é desprezível que o primeiro-ministro tenha que estar sempre beijando-lhe as mãos e submetendo-lhes propostas e prestações de contas.
No Brasil, nosso sistema de contrapesos é essa bagunça que está aí. Mas onde também as massas também tiram seus soberanos do sério e, vez ou outra, lhe mostram que o buraco é mais embaixo. De onde eles só saem, como também ensina o filme, com humildade e vontade sincera de acertar.
Sem, evidentemente, o charme da Helen Mirren.
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