Saio de A Culpa é das Estrelas, o livro mais vendido no Brasil em 2014, me perguntando se Hazel Waze não teria para a Literatura a mesma estatura de, sei lá, Ana Karenina, Capitu ou Madame Bovary.
Os entendidos na arte vão querer me enforcar, mas o que podemos esperar mais de uma grande personagem do que a uma personalidade forte numa grande prova diante do mistério da existência, de onde sairá maior, renovada e mais consciente que nunca de nossas grandezas e misérias?
E com frases geniais a cada topada:
– E então parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime.
– Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente, eu parecia uma morta-viva – as mãos e os pés inchados, a pele rachada, os lábios sempre roxos.
– Não contei que o diagnóstico veio três meses depois da minha menstruação. Tipo: Parabéns. Você já é uma mulher. Agora morra.
– Imaginei meu tumor metastizando para os ossos, abrindo buracos no meu esqueleto, uma enguia rastejante com intenções perversas.
– Meu pai entendia o funcionamento do meu câncer da mesma forma que eu: do jeito vago e superficial que as pessoas entendem como funcionam os circuitos elétricos e as marés.
Hazer Waze tem 16 anos e um câncer terminal. Carrega um cilindro de oxigênio de onde saem duas cânulas enfiadas no nariz para sustentar os pulmões em processo de metástase que, segundo ela, precisam ser lembrados “a toda hora que devem agir como pulmões”.
É amiga de Isaac, de quem o câncer levou um olho e está prestes a levar o outro, num grupo de apoio onde se apaixona por Augustos Waters, de quem um câncer nos ossos levou uma perna.
– Às vezes, o osteossarcoma leva um dos membros só para dar uma sondada em você. Depois, se gostar, leva o restante.
Nas mãos de um escritor menos talentoso, esse dramalhão piegas tinha tudo para cair numa apelação irremediável, no tom edificante, demagógico e motivacional dos livros de auto-ajuda.
Mas o autor John Green não parece interessado em ajudar nada, mas produzir uma obra desafiadora em que a educação sentimental de alguém na fase mais crucial de sua vida se dá da pior forma possível.
Não há qualquer condescendência ou expectativa de final feliz para os três pobres diabos. Nem um obstáculo contornável que conduzirá a algum tipo de heroísmo ou superação.
Ao contrário, ele teve a ousadia de pegar a morte mesmo, em estado bruto, como o desafio que, como se sabe, é impossível transpor.
– Mas essa não é uma história de câncer, porque livros assim são um horror – diz a protagonista narradora, meio alterego do autor, sobre o livro que está lendo. – Anna resolve que ser uma pessoa como câncer que abre uma instituição de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista, então, monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que Querem Curar o Cólera.
O segredo talvez seja o humor fino, judeu, autodepreciativo, que já deu grandes personagens existenciais. Para ficar só num exemplo preguiçoso, os alteregos de Woody Allen.
Mas eu não tinha visto o tema ser tratado de forma tão digna e leve. A ponto de conseguir sugerir, com rara habilidade, o contrário do que toda a desgraça envolvida sugere: a lelebração da vida e um imenso desejo de viver.
Não é para qualquer personagem literário. Não é para qualquer escritor.
Esse John Green, produtor de best-sellers para quem a crítica especializada torce o nariz, é, sim, um dos grandes.
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