Personagens como Marina Silva, Lula e Romário, eleito senador pelo Rio de Janeiro, têm o fascínio de terem superado a miséria.
São o símbolo do Davi frágil e desnutrido contra o Golias da opressão e do preconceito, enraizado na cabeça da humanidade desde que o pastorzinho desceu a montanha em nome de Israel, há 3 mil anos, armado apenas com uma funda para enfrentar um gigante armado até os dentes.
Mas, e se não for nada disso? E se Davi não era a figura tão frágil e despreparada que o mundo incorporou?
Em Davi e Golias, outro de seus livros provocadores, o grande repórter da New Yorker, Malcolm Gladwell, mostra um Davi em condições bem mais favoráveis que o gigante.
Jovem, quase nu e bem treinado, o jovem pastor tinha a agilidade e o treino dos fundibulários, o grupo que fazia parte da retaguarda do exército de Israel, atrás da infantaria e dos arqueiros, altamente experiente em manejar a funda.
Nessa espécie de bolsa de couro ligada a uma corda por dois lados, colocavam uma pedra ou uma bola de chumbo e giravam a circunvoluções cada vez mais altas até soltar uma ponta e disparar o projétil com velocidade de até 34 metros por segundo e precisão de acertar pássaros em até 200 metros.
Já Golias era um guerreiro anacrônico, de visão limitada por provável tumor na glândula pituitária e os gestos prejudicados por uma armadura de 50 quilos – túnica de escamas de bronze até os joelhos, escudo, capacete e lança.
– Golias tinha tantas chances contra Davi quanto qualquer guerreiro da Idade do Bronze com uma espada teria contra um oponente armado com uma pistola calibre 45 – escreveu o historiador Robert Dohrenwend, citado por Gladwell.
Vantagem da desvantagem
O livro trata das vantagens das desvantagens.
Até que ponto as adversidades de pessoas como Marina, Lula e Romário, transpostos aqui para o nosso caso, não foram uma vantagem na competição? Até que ponto o preconceito e a desconfiança contra suas potencialidades não os tornaram mais fortes?
Ele alinha grandes histórias de pequenas e grandes obsessões que puseram personalidades, guerreiros e países em vantagem mesmo em condições desiguais.
- A de Lawrence da Arábia, que desmoralizou o moderno e poderoso exército turco liderando um grupo de beduínos indisciplinados, mas favorecidos pelo tamanho e a agilidade.
- A de André Trocmé, o pastor líder de uma seita protestante que peitou o governo nazista sobre a França ocupada e salvou perto de 5 mil judeus porque carregava a força da perseguição que ele e sua seita sofreram por séculos.
- A de Jay Freireich, um imigrante húngaro que enfrentou seus traumas de infância e todas as resistências da elite médica de Chicago para impor um sistema violento de transfusão de sangue que salvou milhões de crianças com leucemia.
- A de Martin Luther King e seu fiel escudeiro Wyatt Walker na guerra de rua contra a polícia de Birmingham, no Alabama, que marcou o início do fim do racismo nos EUA.
- A de Jack Reynolds, que liderou uma campanha vitoriosa para ampliar a pena de crimes hediondos na Califórnia depois de ter uma filha brutalmente assassinada.
- os impressionistas Pisarro, Monet, Renoir e Cézanne, que criaram sua própria exposição para se opor de uma vez por todas e para sempre à ditadura estética do Salon, a maior exposição de artes do mundo, com poder de morte sobre os pintores de seu tempo.
- Vivek Ranadivé, o imigrante chinês que treinou um time de meninas inexperientes e ganhou um campeonato nacional contra os grandalhões de olhos azuis do basquete.
- O mais produtor de Hollywood, um dos mais poderosos banqueiros de Wall Street e um dos melhores advogados de tribunal dos EUA, disléxicos, que compensaram a dificuldade de ler se transformando em grandes ouvintes ou correndo riscos que não correriam.
Todos com histórias pequenas ou trágicas de rejeição ou perseguição, em busca de uma superação e, como diz Gladwell, da “liberdade inesperada que advém de não se ter nada a perder”.
Como o pai ou mãe.
Um estudo do psicólogo Martin Eisenstadt, de 1964, comprovou que um quarto das 573 personalidades mais relevantes da Enciclopédia Britânica, de Homero a John Kennedy, tinham perdido o pai com menos de 11 anos. Considerando-se os que perderam até os 15, o número sobe para 34,5. Até os 20 anos, nada menos que 45%.
Os limites de Golias
Entender a força de Davi significa também analisar os limites de Golias.
Gladwell embrenha também por exemplos de como o excesso incapacita o poder para enfrentar um médico amargurado como Jay Freireich, um pastor oprimido como Alec Tormé ou um negro massacrado por anos de segregação, como Luther King.
Se você matar um Trocmé ou um Luther King, outros nascerão em seu lugar.
E como o enfrentamento por meios convencionais, numa armadura pesada como a de Golias, pouco pode contra a agilidade e a capacidade de surpreender dos mais fracos.
Em 202 guerras entre países muito grandes e muito pequenos, os mais fracos venceram em quase um terço das vezes: 28,5%. Se a contabilidade for apenas nos casos em que os mais fracos lutaram de forma não convencional, como Lawrence e seus beduínos, a margem aumenta consideralvelmente: os mais fracos vencem 63,6%.
Pensamos nas vitórioas dos azarões como eventos improváveis e por isso a história de Davi e Golias repercutiu tão fortemente todos esses anos. Por que ficamos tão chocados quando um Davi derrota um Golias? Por que pressupomos que alguém que é menor, mais pobre ou menos habilidoso, está necessariamente em desvantagem?
Marina Silva, como Lula ou Romário, é um grande exemplo.
A seringueira miserável que aprendeu a ler aos 16 anos e teve todas as doenças da pobreza, fez de sua origem e de suas dificuldades contra o preconceito das elites a sua bandeira. Ter tido por duas vezes 20 milhões de votos e cacife para definir o resultado das eleições presidenciais do Brasil contra dois Golias, dependendo de para onde aponta sua funda, é um caso de ter usado bem suas desvantagens.
Aquela liberdade inesperada que advém de não se ter nada a perder.
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