De vez em quando Gus Fring se passa pelo comportado gerente de uma das lojas da sua rede de fast food, Los Pollos Hermanos. De boné e gravatinha, dá ordem aos empregados, conversa com os clientes.
Na primeira vez que conversa com Walter White, o professor de Química que resolve fabricar a mais pura metanfetamina que já se viu, descobre-se que ele é de verdade o chefe de uma poderosa rede de tráfico, que usa a infraestrutura do seu negócio para dar escala industrial ao negócio.
Ardiloso, calculista, de poucas palavras, numa interpretação cheia de nuances de Giancarlo Esposito, prepara um jantar para o professor no penúltimo capítulo da terceira temporada.
Com seu jeito de quem consegue tudo o que quer sem levantar o tom de voz, quer convencer o convidado de que é preciso matar o seu parceiro e homem de confiança, um drogado que já havia criado muitos problemas e não mereceria uma segunda chance.
Mas nada disso é dito. À mesa, depois de uma primeira colherada numa comida que parece sublime e um suspiro longo:
– Sempre admiro como os sentidos são ligados à memória. Esse cozido é uma simples reunião de ingredientes. Separados, esses ingredientes não me fazem lembrar de nada. Não é muita coisa. Mas nesta combinação precisa me leva na hora de volta à minha infância. Como isso é possível?
– Basicamente, acontece tudo no hipocampo – responde o professor, medindo as palavras, ainda sem entender onde ele quer chegar. – Conexões nervosas são formadas. Os sentidos fazem os neurônios emitirem sinais que vão direto para a mesma parte do cérebro de antes, onde a memória é armazenada. É algo chamado memória relacional. Não confie nesse termo. Estou enferrujado em Biologia.
– Muito interessante. – Pausa, uma colherada e indo ao que interessa: – Eu gostaria de ajudá-lo, se puder. – Silêncio do outro lado, interesse e desconfiança. – Quando se começa, faz falta ter um conselheiro. Quando comecei, gostaria de ter tido alguém que me aconselhasse. Porque essa nossa vida é muito sobrecarregada. Agora você é um homem rico e precisa aprender a ser rico. Ser pobre é fácil, qualquer um consegue.
O professor tenta abreviar o desconforto:
– Que conselho você tem para me dar?
Gus o olha fundo, a colher parada no ar:
– Nunca cometa o mesmo erro duas vezes.
Só isso. A introdução da comida parece um excesso num roteiro em geral econômico. Mas, nada nele é por acaso. O circunlóquio aqui cria o espaço para que o anfitrião tateie, seduza e ameace de forma elípitica, como é do seu jeito, o convidado impassível à sua frente, mistura estranha de homem honrado e fabricante de drogas.
Os longos silêncios são o grande ingrediente nos diálogos desse belíssimo seriado que começou em tom de comédia e foi-se adensando num drama de impressionante potência.
Não são fortes como os de The Good Wife, afiados como os de Desesperate Housewives ou espirituosos como os de The Big Band Theory ou Two and a Half Men. São enxutos e diretos, mas com uma eficiência rara para fazer a história andar e deixar muito claro o que está acontecendo. Dizem muito ao pontuar a fala dos personagens e potencializam a tensão das cenas longas, esticadas ao máximo do que é possível fazer sem palavras.
O criador e roteirista Vince Gilligan manipula como poucos a arte de deixar espaços vazios com tanta função dramática quanto palavras no lugar e no tempo certos. A ponto de, sem o dizer, não deixar dúvida na cabeça do telespectador de que alguém vai ou precisa matar alguém. E por quê.
O que Gus Fring fará numa cena longuíssima de execução de um desafeto, sem diálogo algum entre quatro homens em cena, é antologicamente exemplar. E potencialmente assustador.
Não é pouco, nada pouco, para uma história que, na aparência, mas só na aparência, trata de uma guerra do tráfico. É suficiente para explicar todo o talento desse roteirista afiado, que começa a começa a pôr a cabeça pra fora na seleção de espécies do darwiniano mercado das séries americanas.
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