Tenho plano de saúde, escola privada para meus filhos e porteiros para garantir segurança no meu prédio.
Vivo, como a maioria das pessoas no meu meio, numa espécie de camarote que me permite acesso com mais facilidade a serviços restritos para a maioria da população.
Sou exemplo do que o americano Michael J. Sandel chama de “camarotização da vida pública”.
Em seus livros Justiça – O que é Fazer a Coisa Certa e O Que o Dinheiro Não Compra, produto de suas palestras de sucesso em Harvard, ele cunhou a expressão para designar o novo mundo de desigualdades produzido pela distância entre os que podem e os que não podem pagar por direitos básicos, como Saúde, Educação e Segurança.
No caso da Saúde, a coisa chegou a tal ponto nos EUA que médicos de boutique têm tabela diferenciada para fornecer ou não o número de seu celular ao paciente. Se o cidadão quer um atendimento vip, personalizado, com direito a acionar o profissional quanto tiver uma dor no calo no fim da noite de um domingo, ele pode.
Ainda não chegamos a essa sofisticação por aqui, mas é mais ou menos o que fazem os profissionais que cobram por fora por procedimentos garantidos pelo SUS ou pelos planos de saúde.
O argumento em geral é de que há o profissional de plantão disponível para o atendimento, mas, se o paciente quer atendimento personalizado, precisa pagar por isso.
Nessa nova visão de medicina, não é obrigação do médico ir aonde o paciente está, independente da hora e do seu estado, mas sim quando e como lhe for conveniente, dependendo do que resultado financeiro. O médico antigo que corria para socorrer alguém em casa é tão fora de moda quanto seringa de vidro.
Nova ética dos médicos
É uma nova ética que torna também antiga a ideia de sacerdócio e obsoleto aquele juramento solene feito na formatura, em que o jovem formado se compromete ser fiel “aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência”. A caridade, pelo menos, já não cabe no caso.
Mas não se trata de privilégio da classe médica.
Nessa nova ordem, jornalistas, advogados, engenheiros e tantos outros estão tentando ganhar por fora da missão que juraram nesse admirável mundo novo em que tudo pode ser comprado e vendido. Seja misturando jornalismo com marketing, no caso dos primeiros; defendendo traficantes no dos segundos; inventando aditivos nas obras públicas, como fazem os terceiros.
Tem a ver também com a consolidação do capitalismo e da competitividade como solução de felicidade. Todo mundo quer ter o seu negócio, o seu próprio consultório ou escritório de ar condicionado, o direito de trabalhar pouco, ganhar muito, viajar para lugares chiques, consumir tudo o que estiver ao alcance e gozar de todos os prazeres desse mundo tão cheio de apelos.
Temos tendência a ser mais intolerantes com os médicos e negar-lhes o direito de embarcar nesse camarote. Porque a displicência deles causa estragos mais visíveis e irremediáveis, como a morte de um inocente. Não se pode dizer o mesmo, de forma visível e imediata, de quem escreve uma matéria manipulada, defende um traficante ou adultera uma obra.
Isso tudo para dizer que entendo perfeitamente por que os médicos brasileiros não querem ir para os confins do país atender pobres por um salário fixo, como aceitam ir os cubanos, e dar às costas às infinitas possibilidades que estão se abrindo na roda da fortuna desse mundo novo, num país que está se inserindo rápido no panorama internacional.
Por mim, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros e prostitutas têm o direito de ir onde quiserem e trabalhar quando e onde escolherem. Só não podem querer proibir os outros de irem e nem encobrir seus argumentos contrários com cortinas de fumaça.
Que o governo é ruim e erra, sim, é verdade. Que as condições são péssimas, sim, é verdade. Que os interesses políticos dos governos são sempre superiores ao da população, também é. Mas também não somos melhores, também temos nossos interesses, nossas idiossincrasias, nossas fragilidades. E só nos resta, se ainda resta, um pouco de compreensão e solidariedade.
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