Saio da biografia de José Dirceu, escrita por Otávio Cabral, de Veja, impressionado com a folha corrida de traições a amigos que haviam lhe dado abrigo, comida e emprego, nos anos difíceis, e a suas mulheres.
Como comandante da mais eficiente máquina partidária do país, comandou a expulsão por infidelidade ou divergir de suas ambições, entre outros, do homem que o abrigara na clandestinidade (Paulo de Tarso Wenceslau), do que lhe dera emprego e estudos na volta do exílio (Aírton Soares) e do que sofreu com ele todos os reveses do movimento estudantil e da guerrilha urbana (Vladimir Palmeira).
Traiu sem dó seu primeiro grande amor, Iara Iavelberg, mítica figura feminina dos primórdios da luta armada. Manteve casa com amante em São Paulo enquanto vivia casado com nome falso no Paraná, nos anos 70. Em crise de abstinência durante o resguardo da primeira filha, já no final dos 80, engravidou a mulher de um amigo enquanto namorava uma terceira, empresária de São Paulo. Recentemente, traiu a que restou desse trio com uma modelo de Brasília, a quem também engravidou.
Seu conhecido jeito insaciável entre os poderosos que lhe deviam favores lhe valeu mulheres de presente. Como as duas com as quais passou dois dias nus numa praia da Bahia ou a ex Big Brother de R$ 30 mil o cachê, capa de Playboy, oferecida por um ministro agradecido na suíte de um hotel em Brasília.
É corrente em política que às vezes é preciso jogar amigos incômodos aos leões para salvar uma causa ou um projeto. JK esvaziou seu ministro da Fazenda e amigo de adolescência, José Maria Alkimin. Tancredo Neves passou a perna em seu amigo de meio século, Ulysses Guimarães, no processo sucessório que poria fim à ditadura militar. De FHC se dizia que fritava os amigos em micro-ondas.
É pacífico também em política que há uma ética privada e outra pública, perfeitamente conciliáveis. O fato de que muitas das estripulias sexuais de Dirceu, conhecidas da imprensa, nunca tenham chegado a público, é sinal de que esse tipo de traição é aceito – e certa forma estimulado – entre os homens.
– Case-se, arranje uma amante e tenha uma vida respeitável como todo mundo – como já ouvi num filme sobre um político fajuto.
Mas o que diferencia grandes e pequenos políticos é o grau de escrúpulo que se coloca na ação e aquele mínimo de dignidade que se tenta manter com quem sempre esteve ao lado, seja a amante ou o ministro.
No caso de José Dirceu, porém, parece que a frieza cultivada desde os tempos do movimento estudantil, em que autorizou sequestro e tortura de um estudante, produziu nele um tipo de pragmatismo frio como estratégia política que beira a psicopatia. Daquela que não aparenta qualquer traço de remorso pelas maldades que foi perpetrando ao longo de uma vida toda dedicada à política, desde os 13 anos, e a uma carreira em direção ao topo sem respeitar obstáculos.
É um tipo de relação utilitarista e prepotente, que explica muito dos tantos inimigos que fez no poder e da relação de amor e ódio que manteve com Lula, o líder metalúrgico que se encaixava perfeitamente nos seus propósitos de ascensão quando procurava uma causa, na volta do exílio, no início dos anos 80.
Sem que explicite isso, o livro deixa entrever como ele, tendo montado um governo paralelo com a ambição e a força desmedidas que tinha sobre o partido, usou e chantageou o parceiro. No comando de todas as votações do Congresso, sabia muito bem quando afrouxar a corda e colocar projetos em risco quando o presidente não endossava suas ambições.
Mas como é sabido também que em política a esperteza come o dono, a prepotência que ignora riscos, circunstâncias e lealdades o cegou para seus limites. A ponto de achar que poderia manter indefinidamente um sistema tosco de gastos infinitos de seu partido e pagamento mensal de R$ 30 mil mensais a deputados, sem que fosse descoberto. Ou, se o fosse, que seria autossuficiente o bastante para manipular a plateia, como vinha fazendo desde que era conhecido como o Ronie Von das passeatas, com seu topete e seus belos olhos.
O azar é que topou com outro utilitarista, tão competente quanto ele para usar e descartar pessoas, mas com menos frieza, mais generosidade, mais avesso a riscos e mais voto. Num jogo excitante que ainda tem muito por ser estudado, Lula também soube lhe afrouxar ou esticar as cordas e deixá-lo aos leões quando chegou a hora. E saiu inteiro do outro lado.
Ele, mal pode sair às ruas. Como também se sabe em política, sem que ele tenha aprendido em mais de 50 anos com ela, é que ambição sem generosidade costuma levar a fins solitários.
Júlio Tavares diz
Texto tão autêntico quanto uma nota de três reais. O livro citado não é uma biografia – pois não é sobre José Dirceu, e sim, contra José Dirceu. Só foram ouvidos adversários e inimigos, a maioria em inescrupuloso anonimato. Trata-se de um livro reportagem compilando o que o próprio autor já escrevera ao longo do tempo na revista Veja. Mérito para o jornalista Otávio Cabral que fatura alguns caraminguás com a exploração do tema e louve-se o espírito democrático de Dirceu que, ao contrário de figuras como o cantor Roberto Carlos – democráticamente respeito o direito de crítica e a liberdade de imprensa.
Leonardo Kfoury diz
É Ramirão… Você como sempre traduz muito bem e em poucas e boas palavras o que vê e lê. Brilhante seu comentário. Sobre a ‘figurinha’, que já era marcada para quem o conheceu nos anos de fogo, não me surpreende nem um pouco, pelo contrário, ainda temos muito a desnudar.