Se você tem filhos pequenos como eu e deseja que
· sejam obedientes,
· tenham noções de limite,
· durmam na hora certa e à noite toda,
· comam frutas e legumes em quatro refeições diárias, no mesmo horário dos adultos,
· façam o próprio lanche,
· leiam ao invés de ver TV,
· cumprimentem os adultos na entrada e na saída e
· tenham um razoável grau de autonomia,
vá para a França. Ou leia Crianças Francesas Não Fazem Manha , da jornalista americana Pamela Druckerman.
Ex-repórter e colaboradora de alguns dos maiores jornais americanos, ela foi para lá, casada com um correspondente inglês, e tomou um banho de civilização criatória de filhos, no entrechoque das culturas francesa e americana.
Ela começa o livro narrando um café da manhã de férias num hotel, desanimada com o caos à mesa provocado pela filha de ano e meio em contraste com o silêncio, a ordem e a força civilizatória nas mesas ao lado, onde crianças na mesma idade, sentadas comportadamente, comiam em paz e harmonia.
Saiu a campo para tentar entender, vivendo na carne a experiência de criar três filhos por lá, do zero aos 6 anos, e se surpreendeu logo de cara que criar filhos respeitosos e autônomos é tão normal e entranhado na vida dos franceses, que eles têm até dificuldade de explicar por quê. Os filhos são criados assim porque assim sempre foram e assim deve ser.
O pulo do gato, segundo aprendeu vivendo, convivendo, entrevistando e lendo, é que os franceses criam limites e libertam seus filhos desde cedo para que possam continuar vivendo suas vidas.
A mulher francesa não tem culpa de entregar o filho na noite do nascimento para a enfermeira, que lhe dará uma fórmula de leite para dormir. Os pais franceses não sofrem de mandá-los para a cama cedo, para que possam tomar vinho e namorar, e para colônias de férias ou a casa dos avós, para aproveitarem os dias sem aula para investirem no casamento a sós.
É quase como uma política pública na França que as mulheres façam ginástica pélvica após o parto para recuperar a elasticidade e retomar o prazer sexual. “Monsieur está feliz?”, é uma pergunta clássica que as ginecologistas fazem às mães nas consultas seguintes ao parto.
São herdeiros de Rousseau, o filósofo do século XVIII que abandonou os filhos numa creche, numa época que todos os pais os mandavam os filhos para uma ama de leite de forma a liberar a mãe para o trabalho. Seu livro Emílio (ou Da Educação), lido por todos os franceses no ensino médio, considerado mais importante que a Revolução Francesa por Immanuel Kant, ainda ressoa no jeito francês de criar filhos.
É dele o conceito de “cadre”, uma moldura dentro da qual os filhos devem ser enquadrados, e, dentro dele, deixar despertar as vocações. Há um limite bem estabelecido dentro do qual eles podem aprender por si mesmos e no relacionamento com os colegas.
– Em vez de ficar atento para proteger Emílio de ferimentos, eu ficaria aborrecido se ele nunca se machucasse e crescesse sem conhecer a dor. Se ele pegar uma faca, não vai apertar com força a ponto de se cortar profundamente.
“Ele imaginava um uma criança livre para explorar e descobrir o mundo, para que seus sentidos gradualmente despertassem”, escreve a autora, para lembrar de sua experiência nas primeiras aulas de natação de sua primeira filha.
Os professores não estavam preocupados em ensinar a nadar. Apenas deixar que as crianças brincassem para “sentir” a água e “despertar” suas potencialidades na interação natural com os colegas. Americana assustada, perguntava-se se, numa aula de piano, as crianças também seriam deixadas a “sentir o piano”.
Uma cena que a impressiona em especial é a da mãe que solta o filho no parquinho, senta, vai ler um livro e – no conhecido ar blasé francês – nega qualquer atenção, proximidade ou conversa à mãe vizinha. (Mulheres francesas, segundo ela, não falam o tempo todo de filhos, lar e empregadas, mas do noticiário e de artes).
A cena nos Estados Unidos, em tudo semelhante à brasileira, é a da mãe acompanhando cada passo do filho, no parquinho, preocupada com o tombo, a briga com o coleguinha e em otimizar o aprendizado do filho em cada gesto, em cada relação com seu mundinho.
Para a francesa que deixa a criança despertar para o aprendizado dentro de seus limites, a contrapartida americana é querer “acelerar as fases”. Jean Piaget, outro dos maiores teóricos franceses, cunhou em seus estudos o que chamou de “a grande pergunta americana”, a partir de suas palestras nos Estados Unidos. Em geral, quando dizia que a criança tem etapas que não precisam, não devem e não convém ser quebradas, ouvia das mães: “como posso apressá-las?”
Manual aparentemente despretensioso sobre criação de filhos, Crianças Francesas Não Fazem Manha acaba despertando uma comparação inevitável entre a formação de uma sociedade competitiva como a americana, em que nos espelhamos, e o jeito plácido de um continente onde se fazem refeições longas, trabalha-se menos e as creches são gratuitas para liberar espaço de vida para os adultos.
Não se espere, como possa parecer, um jeito meio “larga pra lá” dos pais franceses. Ao contrário, eles são duros com o “cadre”, não elogiam o tempo todo, são críticos com os deveres escolares (livros infantis não têm necessariamente final feliz) e não negociam horários e refeições.
A grande diferença parece ser que descobriram, incorporado por séculos, um equilíbrio entre ser duro e amoroso, no tempo certo e na hora certa. O que Pamela Druckerman parece descobrir também, com conflito e prazer num texto saboroso de um livro indispensável.
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