Uma tentativa de sistematização do que ando ouvindo, pensando e presumindo sobre as passeatas de junho:
1. Tendo ou não líderes, estando ou não focado, o movimento ganhou apoio da maioria da população, que trai indiscutíveis traços de cansaço com tudo isso que está aí. Das más condições de vida aos desmandos nos três poderes e à velhacaria política.
2. Caleidocóspico, sem rosto, voz e objetivo claros, o movimento serve de espelho para cada um projetar sua insatisfação particular. Cada um acha nele o seu motivo de desconforto: inflação, corrupção, insegurança, deficiências dos serviços públicos, desmandos do Executivo, leniência do Legislativo, lentidão do Judiciário. Fora o varejão da hora: PEC 37, cura gay, Feliciano, 39 ministérios, tomada de três pinos.
3. Como todo movimento primaveril de democracia, começa pelos progressistas e termina nos conservadores. Os movimentos espontâneos de rua levantam a bandeira que a ordem estabelecida acaba incorporando. Foi assim com a revolução francesa, os movimentos de liberação de 1968, com o impeachment de Collor, a derrubada de regimes na Tunísia e no Egito. Tudo muda para ficar como está. Ou um pouco modificado, na melhor das hipóteses.
4. Em regimes de exceção, seus líderes são decapitados. Em democracias, cooptados e vão adequar seus sonhos à nova ordem. Alguns sabem se adequar às exigências da maioria e viram estadistas. Outros viram políticos de carreira. No Brasil, vivemos para ver grandes sujeitos que lutaram contra o regime militar, cheios de ilusões, terminarem engravatados, obesos e satisfeitos com as regalias do poder. Se o país mudar de fato, a longo prazo, os jovens de hoje podem não ser os José Genoínos, Zé Dirceus ou Lindberg Farias de amanhã.
5. O movimento de hoje acaba com o monopólio do PT e seus satélites – CUT e MST – sobre os movimentos de rua e é uma tremenda mudança de paradigma. Com suas lideranças empregadas no serviço público, pode enfim ter entendido que faz parte do governo e ter saído do palanque. Ficou igual aos demais partidos tradicionais, como é inevitável com qualquer um que chegue ao poder. Falta só tomar consciência disso.
6. As redes sociais substituíram a mobilização até então feita por lideranças, associações, telefonemas e reuniões. Na manhã desta quinta-feira de manifestações monstros em várias cidades, 2,7 milhões de tuiteiros haviam marcado presença. Sintomático que Dilma passou para a central de inteligência, Abin, o monitoramento da movimentação, porque os assessores envolvidos na articulação com os movimentos sociais perderam a interlocução.
7. Os políticos, os líderes estabelecidos, estão acuados mas não perderam a guerra. Fazem um recuo tático e, na hora certa, saberão domar o monstro, capitalizar sua insatisfação, incorporar suas propostas de mudança e cooptar seus líderes. São formados para isso. Líderes táticos brilhantes como Lula valem mais do que uma multidão inteira e a leva para onde quiser. Tá faltando um.
8. Como atira para todo lado e transforma todos os governantes em culpados, o movimento iguala todo mundo e zera as vantagens de qualquer um deles na campanha sucessória do ano que vem. Dilma não serviria, mas as alternativas postas também não ajudam. Aécio Neves, de traço conservador, não faz o perfil da meninada.
9. Sem Dilma e sem Aécio, Marina Silva vai arrastar os votos das ruas, mas o apoio só a leva até a boca da eleição. Lá, ela depende de dinheiro, estrutura partidária e apoio dos pobres e dos ricos, que estão em outros lugares, com outros interesses e mais receptivos a mensagens tradicionais. Até lá, Aécio e Dilma já terão ajustado o discurso, incorporado as ambições das ruas, diluído a importância do movimento e ficado iguais – como aquele tipo de alternativa inevitável como a democracia: não prestam, mas não existe melhor.
10. Se não criar liderança para negociar, ajustar o foco, coordenar as manifestações para terem hora e lugar certos – principalmente saber a hora de parar – e ficar saindo às ruas todos os dias, a passeio, o movimento pode dar sono. E, como tudo nesse país, virar piada.
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