A última Veja informou que a presidente argentina Cristina Kirchner levou hora e meia para formalizar os cumprimentos de seu país ao papa eleito, segundo seus correspondentes na Itália, Adriana Dias Lopes e Mário Sabino. Ou duas horas, segundo Nathalia Watkins e André Eler, enviados a Buenos Aires.
Os quatro divergiram em meia hora, na mesma edição e num intervalo de treze páginas, para acentuar o que seria a má vontade da presidente com o ex-cardeal com o qual ela e seu marido vinham brigando nos últimos tempos, em torno das surradas questões conhecidas e abominadas pela Igreja – casamento gay, aborto, preservativos.
Hora e meia ou duas, independente do erro de revisão, é muito ou pouco?
1. Se se considerar o dono de um jornal ou o chefe de uma assessoria de Imprensa que está só esperando a fumaça branca do Vaticano sair para redigir uma nota, é muito.
2. Se for o dono de uma pequena empresa ou um de escritório de advocacia, em que ele mesmo se dispõe a redigir uma nota para se dar alguma importância, mesmo correndo o risco de interromper seus afazeres regulares, é mais ou menos.
3. Mas se ele comanda uma estrutura mais complexa, uma multinacional ou um país, cuja manifestação pode repercutir no mundo todo, ainda mais se um de seus membros for eleito para o mais alto cargo terreno, aí pode ser pouquíssimo ou bastante razoável.
Não precisa ser jornalista para imaginar que o presidente de uma estrutura assim não está ali só esperando a fumaça sair para redigir uma nota. Que ele não vai interromper uma audiência ou qualquer coisa que estiver fazendo para sentar-se ao computador e redigir ele mesmo uma nota.
O presidente de um país, mesmo se estiver pensando só nisso, em geral pede a nota a seu ministro da Casa Civil ou da Comunicação –– ao Itamaraty, em caso de relações internacionais – que dispara uma cadeia de comando, que chega a um assessor ou a um diplomata. Que por sua vez ouve, discute, redige e manda de volta, para outra rodada de considerações, correções, adequações de linguagem, avaliação política do impacto de certos termos e, por fim, a sanção do responsável último pela assinatura.
Parece que, na cabeça dos quatro jornalistas, a presidente da Argentina estava ali apenas esperando um papa argentino ser eleito, contra todas as previsões. Como é comum nas redações, deveriam achar que ela estava à disposição para atender as demandas ou as expectativas da imprensa. E especialmente ela. Não cobraram a mesma pressa da presidente brasileira ou do presidente americano ou de qualquer outro dirigente europeu.
(A revista Época caiu na mesma intransigência ou simplificação, ao informar que a presidente reagiu com frieza, sem explicar como pode ser fria uma nota, melhor do que a de Obama, que enseja ao novo papa “uma frutífera tarefa pastoral, em busca da justiça, da igualdade, da fraternidade e da paz na humanidade”.)
Não sendo isso e nem a ingenuidade de achar que a presidente iria ficar de picuinha num momento desses, só pode ser um tipo de comportamento muito comum, algo irresponsável e um tanto leviano de nossa classe de utilizar um exemplo fácil e não verificável para reforçar preconceitos, construir ou desconstruir mitos. Para informar que a presidente de fato atrasou a nota por má vontade e não dourar a pílula para surtir certos efeitos estilísticos, seria necessário maior pesquisa, investigação, reportagem, telefonemas exaustivos para a Casa Rosada.
Ou os jornalistas podem achar que esse tipo de afirmação perdida no meio de uma reportagem extensa é corriqueira, irrelevante e em nada altera a roda do mundo. Que se trata de um símbolo, apenas uma boa metáfora de todo o mal estar que se sabe ter havido entre os dois, desde sempre.
Pode ser também que o mal estar seja entre ambos seja verdade e não precise ser dourado com frases de efeito. Há um vasto noticiário dentro e fora da Veja mostrando os velhos embates entre eles, não muito diferente dos que ocorrem em todas as relações da Igreja com os governos de países que não defendem seus princípios arcaicos.
Problema é que todo o noticiário e suas frases de efeito carregam a mão contra ela, sem considerar que, mesmo sendo o diabo que pinta, desta vez ela pode estar certa.
– É preocupante escutar frases como “guerra de Deus” ou “projetos do demônio”, coisas que lembram tempos medievais e a Inquisição – disse ela certa vez sobre as posições do cardeal que, como se sabe, ainda não saiu do século XV e comandou uma Igreja cheia de histórias mal explicadas com os generais da ditadura de seu país.
Não é o que vai se passar a história, entretanto.
No futuro, quando um jovem pesquisar a outrora quinta maior revista do mundo para verificar o que andou acontecendo, vai ver, fora os erros de revisão, que a presidente do país que deu o primeiro papa em 1.300 anos nutria uma tremenda má vontade com ele, a ponto de dar-se a picuinhas de canastrona de novela.
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