Revejo o seriado Os Bórgias (foto divulgação), sobre o papa Alexandre VI (Jeremy Irons) que mandava matar os cardeais inimigos, mantinha amantes e participava de bacanais. Leio algumas resenhas sobre A História Secreta dos Papas e seu catálogo de psicopatas envolvidos em assassinatos e luxúria. Passo por relatos da Inquisição e penso na brutalidade lenta de todos os dias que estupra crianças no fundo das sacristias, com omissão dos bispos. E me pergunto como uma instituição pode ter sobrevivido mais de 2 mil anos e ainda manter algum vigor com tanta roupa suja.
Leio então muita coisa sobre a renúncia de Bento XVI e me impressiono, ao mesmo tempo que me solidarizo, com o grau de irritação que a Igreja Católica provoca mundo afora. Se ela está de fato acabando, como dizem, e seu poder vai se restringindo cada vez mais às áreas mais atrasadas do planeta – América Latina, África e parte das Ásia – por que simplesmente não ignorá-la?
A primeira resposta só pode estar na coerência com que a Igreja mantém a ferro e fogo o postulado simples sobre o qual se assenta desde sempre: ama o próximo como a ti mesmo e Deus sobre todas as coisas.
O papa que faz vistas grossas aos males atuais da Igreja, por omissão ou impotência sob a hierarquia poderosa do Vaticano, é herdeiro e guardião desse mantra simples que foi revolucionário quanto seu criador caminhou sobre a terra e continua revolucionário nesses tempos vulgares, hedonísticos, em que a vida é barateada e a busca desesperada dos prazeres materiais rápidos suplanta os valores mais perenes.
Somos herdeiros dessa tradição. Conscientes ou não, católicos ou não, incorporamos todos essa verdade básica de respeito ao outro, a quem não podemos matar, escravizar ou oprimir. Só ela, por simples, indiscutível e eficiente, explica porque ainda não degringolamos de vez e mantemos os tênues fios de civilização que nos unem.
Defendida a ferro e fogo desde sempre, essa tradição explica muito das posições intransigentes de todos os papas, que tantos nos impressionam e nos irritam. Eutanásia? Aborto? Sexo livre? Todos são contrários à verdade absoluta que ela defende, contra todas as mudanças terrenas. Podemos/devemos não concordar com ela, mas é nela que se assenta a missão sobre a qual essa instituição foi fundada. Só ela mantém a coesão de sua hierarquia por tantos séculos. E só ela ainda mantém seu frescor tanto tempo depois e ainda cala fundo na nossa alma.
Problema é que nos sentimos traídos quando descobrimos que os guardiões dessa verdade – a única que pode nos redimir do grande bacanal destes tempos vulgares – não parecem ter legitimidade para guardá-la e defendê-la. Seja pela hipocrisia, pela omissão por seus crimes, pela corrupção, pela ambição barata, pelo apego aos bens transitórios, pelo desrespeito à vida dos adolescentes, por, enfim, tudo contrário ao que essa tradição nos ensinou desde que aprendemos a ter medo do pai todo poderoso – ou que metáfora ele signifique para cada um – e amar o próximo como a nós mesmos.
E é possível que estejamos nos sentindo também traídos também pela renúncia. Se aprendemos desde sempre a manter a fé, a humildade e a coragem diante das adversidades, como explicar que o representante soberano de Deus e da verdade revelada sobre a terra caia fora no primeiro aperto?
Queremos, no fundo, católicos ou não, acreditar que os valores que o homem da Nazaré legou ao Ocidente sejam os universais, indiscutíveis e insuperáveis para nos manter a salvo das tentações. Mas como continuar acreditando se nem seu principal discípulo parece acreditar mais?
Ou: se nem Deus, através de seu representante, acredita, estamos todos perdidos.
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