Está cada vez mais difícil marcar uma consulta com a pediatra de seis anos lá de casa.
– Finge que você vai consultar sua filha. E eu sou a doutora Juliana.
Finjo. Ligo do celular de plástico: triiiimmmm.
– Alô, eu queria marcar uma consulta com a doutora Juliana e…
Mas aí ela já diz que é outra pessoa.
– Ela não pode atender agora. Aqui é a Flávia, secretária dela.
– Ah, bem. É que eu queria marcar uma consulta…
– Que dia que o senhor quer?
– Dia 12.
– Ah, eu tenho só para o dia 17, 24, assim. Que horas?
– Pela manhã, qualquer hora.
– Ah, eu tenho assim 17 horas, 13… Também 20 também.
– Tá bom. Marca qualquer uma dessas.
– Péraí que vou passar para a doutora Juliana.
Aguardo.
– Alô? Doutora Juliana?
– Sou eu. Qual a idade da sua criança?
– Sete anos.
– Ah, eu só atendo assim criança de seis, cinco anos.
– Eu tenho uma de cinco também.
– Mas aí eu tenho que ver com a Flávia se tem horário. Péra um instantinho, por favor.
E volta pra tal Flávia.
No consultório, a coisa piora. Vou chegando…
– Pois, não, doutora Juliana…
– Não, espera. Finge que você pergunta pra secretária se eu estou.
E fecha a porta do quarto.
Pergunto à Flávia imaginária se a doutora Juliana está e falo de minha consulta marcada. Ela abre a porta e finge se despedir de alguém. Depois se se dirige a mim.
– Pois, não. – E também se dirige à Flávia imaginária: – Ele estava marcado, Flávia?
Entro no jogo:
– Ela disse que não está marcada…
Ah, pra quê? Ela repreende a pobre da secretária.
– Oh, Flávia, quanta vezes eu preciso te dizer…
Etc.
Dentro do quarto/consultório, enfim ela me manda deitar. Mas, na hora do exame, diz que tem que ir lá dentro pedir a vacina a uma tal de Valéria. Precisa de algodão também que ela tem ir lá dentro do banheiro pedir a um tal de Pedro. E por aí vai.
No supermercado que ela monta no sofá da sala, é pior. Enfileira tudo o que acha pela frente, uma caderneta, um caderno, uns três livros dela, uns três livros meus, uma caixa de lápis, um apontador, um dvd, uma cola pritt, um copo, um abridor de garrafa, uma lata de pomarola, uma Barbie, um estojo de maquiagem. Embola algumas sacolas atrás de sua poltroninha roxa, senta atrás de sua mesinha de princesas, diante do laptop e do telefone sem fio, e…
– Agora finge que você vem fazer compra.
Entro, cumprimento, mas ela finge que está dedilhando alguma coisa no computador. Empurro o carrinho de plástico e vou colocando nele a lata de pomarola, um livro, o abridor de garrafa e vou me aproximando do caixa imaginário. Mas ela interrompe.
– Finge que você está com sua filha e ela quer a Barbie.
Finjo.
– Oh, filhinha, você quer a bonequinha, quer? Tá bom. Papai leva. Vamos.
Coloco no carrinho e me dirijo, enfim, ao caixa em que ela pontifica.
– Boa tarde…
Mas ela já tem outros planos…
– Finge que você está na fila aí e vai conversando com alguém aí.
Finjo também. Converso com algumas pessoas invisíveis à minha frente.
– Mas tem chovido, hein? Você vem sempre aqui? Ah, eu gosto muito de vir nesse supermercado.
– O próoooximo – ela grita.
Chego, mas ainda não é a minha vez.
– Finge que tem mais gente.
Finjo.
– Mas tem chovido, hein? Você vem sempre…?
Quando chega a minha vez, ela faz gracinha com a minha filha imaginária.
– Oi, filhinha. Fazendo comprinhas com o papai, é?
Pega o abridor e passa nele o telefone sem fio, como se tivesse um código de barras na ponta. Aperta um botão do telefone e piiii. Faz o mesmo com o livro. Telefone, botão, código de barras e piiii. Quando pega a pomarola, pede um tempo e vai até a sala.
– Um instantinho, por favor, senhor.
Ouço, vindo da sala:
– Júlia, você está sabendo onde a Mariana colocou o meu grampeador? O freguês está com pressa.
Não faço a menor ideia da falta que faz um grampeador para uma caixa de supermercado, mas ela volta. Senta, pega a pomarola, passa o telefone, aperta o botão, piiii, e tudo bem. Depois pega a boneca e se dirige à minha filha, supostamente à direita do caixa, ao meu lado.
– Papai vai te dar a bonequinha filhinha, vai? – E ela mesmo responde… – Que bom. Você vai adora essa Barbie… Você tem muitas barbies?
Passa o telefone na boneca, mas o apito não sai. Balança a cabeça negativamente e grita para uma tal de Flávia. Tem sempre uma Flávia atrapalhando a sua vida.
– Flááávia. Essa boneca tá sem jeito de passar.
Vira a boneca para um lado e outro, de cabeça e ponta cabeça, digita alguma coisa com se estivesse lendo algum código no calcanhar da boneca e sentencia, enfim.
– Oh, filhinha, você não vai poder levar a boneca…
Aí, eu perco a paciência.
– Mas, por que, não? Agora que ela quer? Como é que eu vou fazer ela parar de chorar agora. – Viro para minha filha, supostamente no lado direito do caixa. – Não chora, filha, não chora. Calma, calma. A moça vai dar um jeito. – E voltando-se para ela, alterado: – Tá vendo, dona, tá vendo?
Ela faz um “tá bom” contrariado, pede mais um instantinho, por favor, e volta para a sala onde pede alguma coisa, agora a uma tal de Fernanda. Volta com um caderno e uma caneta. Senta. Vai passando de novo os produtos e anotando tudo a mão, em hieróglifos.
Enquanto espero, fico imaginando o que a faz criar tantos empecilhos para concluir seus telefonemas, suas consultas e suas vendas imaginárias. Possivelmente para aumentar as possibilidades de interação e esticar o tanto quanto possível a hora da brincadeira com o papai.
Mas não deixo de achar curiosa a forma como vai aprendendo e me ensinando a ver o mundo. Um mundo cercado de tecnologias problemáticas que depende de pessoas de carne e osso para andar. Onde é preciso recorrer hora ou outra a Flávias, Marianas e Fernandas para que as coisas tomem rumo.
E fico desejando sinceramente que em 2013 e em todos os anos à frente ela continue achando assim: que a tecnologia é algo apenas problemático que nos dá motivos para aproximar, depender e aprofundar nosso conhecimento dos outros.
Até que ela pega uma das sacolas atrás da poltroninha roxa, coloca tudo dentro, menos a boneca, e me entrega, confirmando sua sentença, sem piedade:
– É. Mas a boneca não tem mesmo jeito.
LUIZ OTÁVIO diz
Texto maravilhoso! Delicioso!