Pego minha filha de 5 anos e meio chorando aos borbotões porque uma tal de Maria Joaquina destruiu o buquê de flores oferecido por um tal Cirilo. Temo que ela esteja vendo novela adulta antes da idade, mas a mãe vem em socorro para explicar que se trata de Carrossel, a novelinha infantil que vem tomando alguma audiência do Jornal Nacional, mais uma das que o SBT não tem o menor pudor de importar e reciclar do México, a pátria dos folhetins primitivos, de mensagens simples, heróis e bandidos carimbados.
Maria Joaquina é uma branquinha esnobe e rica e Cirilo um negrinho humilde e pobre, que ela esculacha sem piedade a cada vez que ele se arrasta em sua direção. Na cena em questão, ele vence mais uma vez todos seus remorsos para ofertar um buquê de flores brancas que ela trucida impiedosamente, na mesma mão que o recebe, enquanto o encara com desprezo e maldade de Bette Davis.
Vou ver a novela para entender o contexto e tentar proteger minha filha dos erros de interpretação do mundo e dou com 16 crianças engravatadas em uniformes amarelo vivo e xadrez verde, numa sala de aula colorida e asséptica. Parece se situar em algum lugar indefinido, acima de nossa realidade, igualmente asséptico, mais para Canadá ou Groenlândia, não fossem os sobrenomes mexicanos que a adaptadora Íris Abravanel deixou passar por erro ou preguiça (Rivera, Zapata, Carrilho), o merchandising mais tosco que já vi (a professora dá uma aula de limpeza com o sabonete lifebuoy) e todos os estereótipos possíveis.
Além da riquinha esnobe, tem a gordinha, a esforçada de óculos, o bagunceiro, um judeuzinho de kipá, um japonesinho de bandana com símbolos do Japão – espécie de legenda na testa para traduzir sua origem –, e um, não mais que um, negrinho. À frente, uma professora do século XVIII, Helena (Rosane Mulholland), a coisa mais casta e delicada que já apareceu na TV, espécie de Madre Tereza de saias rodadas e blusinhas de lã. Que suporta com altruísmo de freira as travessuras da turma e abjura de namorados para cumprir sua missão de salvar seus alunos de problemas dados como dramáticos. Como convencer a madrasta de um deles a receber de volta um cachorro de estimação. De nome mexicano, claro: Rabito.
Tanta simplificação para seduzir corações desavisados me incomodou menos, porém, do que a mensagem subliminar carregada de sinal trocado que veio rebombar dentro de minha casa. Na intenção primitiva de ser didática sobre a obrigação de sermos respeitosos com os negros, a novela acaba informando, involuntariamente, que negros podem ser diferentes e até mesmo inferiores, sim, mas não quer dizer que possamos maltratá-los.
O diretor Reynaldo Boury, que dirigiu a primeira fase de O Sítio do Picapau Amarelo, poderia ter percebido que Monteiro Lobato – a anos-luz de distância das concepções de mundo de Íris Abravanel – nunca colocou em discussão se o Tio Barnabé, a Tia Anastácia ou o Saci deveriam ser tratados melhor ou pior por serem negros. Eles eram naturais ao cenário como na vida o eram empregadas e agregados, tratados por iguais por Narizinho e Pedrinho, sem discurso. Talvez não fosse politicamente correto, mas as tentativas de tratar de racismo de forma proselitista na TV sempre soou falso, perigoso e contraproducente.
Os negros só deixaram o papel de empregados nas novelas da Globo para cair no ridículo por abordagens equivocadas. Na primeira vez que a emissora tentou fazer campanha politicamente correta dentro de uma novela, colheu uma significativa decepção do público ao colocar Antônio Fagundes como par romântico de Zezé Mota (Corpo a Corpo), a grande intérprete de Chica da Silva. Mais recentemente, inventou de colocar o excelente Lázaro Ramos como galã rodeado de mulheres brancas (Insensato Coração). Como se, para serem respeitados, Zezé Mota precisasse de um branco bem sucedido e Lázaro de mulheres louras. Mais ou menos como jogar um negro, o único, dentro de uma sala de aula canadense com sotaque mexicano para provar que precisa daquilo para ser reconhecido como igual.
Como sabedoria de criança é sempre esponeamente convincente, compreendo que o tiro pretendido pelo SBT pode ter saído pela culatra. Até a novela, minha filha não percebia diferença entre negros e brancos, a não ser que um era mais escuro ou mais claro que o outro. Depois da novela, ela passou a saber que, sim, pode haver mais diferença entre eles do que apenas a cor.
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