Romance e suspense de tribunal inteligentíssimo, Um Milhão de Pequenas Coisas, de Jodi Picoult, elucida com generosidade e sem militância a tragédia do racismo
Bruno Gagliasso e Giovana Ewbank devem ter sentido na agressão de uma mulher asquerosa a seus filhos adotivos, num restaurante chique de Portugal, mais uma do milhão de pequenas coisas que sentem as pessoas negras desde que nascem.
A expressão é título de um romance maravilhoso que fez pelas minhas convicções sobre a tragédia do racismo mais do que possivelmente todo o conjunto de tratados de afirmação identitária que vêm sendo publicados nos últimos 40 anos.
Um Milhão de Pequenas Coisas, título brasileiro para “Small Great Things”, da best-seller do New York Times Jodi Picoult, é um excitante suspense de tribunal, com três personagens extraordinários, a partir de uma sacada genial.
Uma enfermeira negra, formada numa universidade de elite e experiente de mais de 20 anos, é proibida de tocar no recém-nascido de um supremacista branco, do tipo que se diverte espancando homossexuais. O hospital relativiza o pedido esdrúxulo como um caso de opção religiosa e registra a proibição no prontuário.
Ela obedece, mas, durante a substituição imprevista de plantão, dá o azar de ficar sozinha com o bebê numa crise de asfixia decorrente de um problema congênito, que o leva à morte, apesar de seus esforços para reanimá-lo.
Seu conflito entre descumprir uma ordem, seu juramento médico e as manobras violentas de ressuscitação cardiopulmonar que é obrigada a fazer, em vão, são confundidos com vingança que vai alimentar uma batalha judicial de um milhão de ensinamentos morais.
Uma promotora também negra de uma elite privilegiada vai acusá-la. E terá que se haver com uma defensora pública, branca, classe média, assoberbada de processos da ralé desvalida que entope os tribunais americanos.
É com ela que vai desenvolver uma cumplicidade acima de qualquer credo e raça, em que cada uma aprende com as diferenças e os preconceitos da outra. Tanto uma quanto a outra têm parentes e colegas, negros e brancos, também preconceituosos.
Com a manobra, a escritora faz uma manobra espertíssima para evitar o maniqueísmo do discurso previsível sobre racismo, e constrói um suspense admirável de múltiplas implicações políticas, jurídicas e humanas, sem apelos fáceis e previsíveis.
Foi inspirado em caso real semelhante de uma enfermeira do Michigan e na frase do grande líder da luta pelos direitos civis, Martin Luther King: “ se eu não puder fazer coisas grandes, posso fazer coisas pequenas de forma grandiosa”.
Juntas, enfermeira negra e defensora branca fazem coisas pequenas que podem ter reflexos grandes e duradouros, mas Jodi Picoult ampliou o sentido para as pequenas e múltiplas agressões contra negros que as duas vão vivenciar todos os dias numa cultura branca que os discrimina inconscientemente.
A mãe branca clássica da promotora disfarça mal o desconforto com a opção da netinha pela fantasia de Tiana, a princesa negra da Disney, por exemplo. No seu processo de aprendizado na convivência com a nova cliente, vai sentir por ela e com ela as tantas pequenas agressões imperceptíveis porque naturalizadas no dia a dia, na escola, no supermercado, no trabalho.
Grande escritora de 14 milhões de seus 25 livros vendidos nos EUA e um talento raro para transformar questões sociais de peso em grandes romances (seu primeiro best-seller “19 Minutos” trata de tiroteio em escola), Picoult sabe muito bem o terreno pantanoso em que está pisando.
Opera muito bem aqui para que seu livro magistral não resulte num panfleto político.
Pesquisadora cuidadosa, vê-se que estudou a fundo os ícones da militância feminista envolvidas com a teoria da raça que alimenta a militância identitária por justiça social que vazou da universidade para a vida pública, nos últimos 30 a 40 anos.
Da mesma forma, também foi fundo nos meandros da enfermagem pediátrica, do judiciário e do submundo dos supremacistas e skinheads para dar autenticidade a seus imensos três personagens, todos narradores em primeira pessoa. Um trabalho impressionante para convencer sobre as motivações de quem salva, acusa, defende, julga ou espanca humanos.
Na longa explicação em Notas da Autora, sobre suas pesquisas e as origens de sua motivação para tratar de tema tão delicado, a partir de casos reais, deixa entrever a transformação que o livro operou nela mesmo, mulher branca que se confunde com as crenças e preconceitos da defensora, seu óbvio alterego.
Caiu no medo de que pessoas negras, que ela não chama de militantes, pudessem acusá-la de ter escolhido um tema que não pertence a ela, branca do tipo loura. Ecoa uma das novas formas de intolerância da militância identitária que restringe a cada grupo ou cultura o direito exclusivo sobre sua história, mesmo ficcional. A turma ridícula que implica com quem veste turbante ou cocar de índio no carnaval.
Mas superou magistral e corajosamente ao se fazer voz de uma negra no lugar errado e na hora errada num sociedade que já lhe é desconfortável por natureza.
Seu intuito, como diz, não foi fazer um livro para negros, mas para ajudar a transformar a conciência de brancos como ela. “Se você é branco como eu, não pode se livrar do privilégio que tem, mas pode fazer bom uso dele.”
– Não escrevi este romance porque achei que seria divertido ou fácil. Eu o escrevi porque acreditava que era a coisa certa a fazer e porque as coisas que nos deixam mais incomodadas são aquelas que nos ensinam o que todos precisamos saber. (…) Há um incêndio ativo, e nós temos duas escolhas: virar as costas ou tentar combatê-lo. Falar em racismo é difícil, mas nós que somos brancos precisamos ter essa discussão entre nós.
É surpreendente que, de seus aprendizados para o livro, tenha tomado consciência política sobre a miopia branca para as diferenças desfavoráveis aos negros que resultaria em proselitismo barato se não fosse uma grande escritora.
Apesar de ser quase possível perceber uma quase nova militante identitária, cheia de teorias e alguns cacoetes sobre privilégio branco, nenhum sectarismo emerge desse grande livro.
Apenas uma tremenda generosidade de que são capazes os grandes escritores empenhados em cavar mais fundo as razões reais da alma humana, apesar de suas circunstâncias.
> Publicado no Estado de Minas, em /8/2022
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