Sem noção de suas responsabilidades, presidente cai no senso comum de culpar a vítima e perde a oportunidade de fazer o marketing certo de sua responsabilidade legal
O Rio de Janeiro ainda era a Cidade Maravilhosa no início dos anos 80, experimentando a primeira onda de assaltos de batedores de carteira comuns numa cidade turística que atraía gente do mundo todo, quando Jô Soares criou em seu programa semanal o personagem Gelatina.
Era um guarda de esquina que morria de medo dos assaltantes e chegava a se esconder atrás de quem lhe recorria pedindo providências para captura do, conforme a expressão da crônica policial, meliante.
Culpava a vítima por ter andado por lugares indevidos, antecipando em 40 anos uma situação que piorou drasticamente e produziu milhares de Gelatinas na polícia carioca. Apesar dos fuzis e submetralhadoras que substituíram o precário 38 do simpático personagem.
Eles também não recomendam que se suba aos morros. Ecoam o que virou senso comum na orla praiana e se estendeu para o resto do Brasil, onde todo mundo vive um pouco o pesadelo das favelas cariocas: culpar a vítima por andar em lugar errado.
— Resolveram entrar numa área completamente inóspita sozinhos, sem segurança — viria a ecoar Jair Bolsonaro sobre o jornalista e o indigenista que foram defender índios na Amazônia, ao cabo de um monte de acusações que começou na culpa do primeiro: — Deveria ter tido mais cuidado consigo próprio.
É comum e aceitável no senso comum do cidadão indefeso e mesmo em conversa de bar de políticos, onde se fala o que não se publica, mas totalmente estúpido em policiais e extremamente estapafúrdio num presidente da República.
Não só porque dá um atestado cabal de que o Estado que comanda não tem qualquer controle sobre determinadas áreas, como amplifica a sensação de insegurança que tem a obrigação de combater e se omite sobre o dever moral de um líder em corrigir certos sensos comuns equivocados.
E ainda revela o quanto é despreparado sobre a dimensão de suas responsabilidades.
De todas as trocentas possíveis declarações que poderia ter dado para honrar a cadeira que ocupa, emitir sinais de conforto e segurança que a hora exige, preferiu a pior. Ou as piores, numa lista de acusações que ganhou mundo e chegou a seu inimigo preferido, a imprensa.
— Esse inglês era malvisto na região porque ele fazia muita matéria contra garimpeiro, questão ambiental. Aquela região lá, região bastante isolada, muita gente não gostava dele. Tinha que ter mais do que redobrado a atenção para consigo próprio. E resolveu fazer uma excursão.
Mais estúpido é que tinha o que falar. Outro no seu lugar, com um mínimo de noção de seu papel e suas responsabilidades, reportaria o trabalho que vinha sendo feito pelas forças de segurança na região, o andamento das investigações, sua orientação e as possibilidades ou falta delas de encontrar os culpados. Tipo:
— Bom, nossas equipes estão trabalhando, as Forças Armadas e todo o governo estão empenhados 24 horas nos esforços, em conjunto com as forças estaduais, etc. A região é complicada, mas estamos preparados etcetera e tal.
No mínimo, acrescentaria força moral às equipes em terra e água, como ao restante da população que sempre espera um farol condutor de seus líderes máximos. E ainda, a seu gosto, faturaria o marketing certo, que é o que fazem também os presidentes com um mínimo de noção do tempo e do espaço que administram.
A Amazônia é uma espécie de morro carioca, onde o Estado vem perdendo o controle desde Gelatina e chegou ao ponto em que jornalistas e profissionais que vão lá fazer o papel das autoridades têm mais chances de vida se pedirem proteção aos criminosos.
É uma história em suspense crescente desde que era invadida por garimpeiros amadores e traficantes de borracha no final do século XIX até chegar ao caldeirão de interesses em que se misturam criminosos e sobreviventes, madeireiros, garimpeiros, traficantes de ouro e pescadores.
Que também caem no crime contra os índios para preservar seu sustento, como provou o resultado das investigações das polícias, que chegaram aos dois pescadores que puxaram o gatilho contra o jornalista e o indigenista. São vítimas criminosas.
Tão complexa quanto a vida no lado ruim do Rio, onde a população acaba se relacionando numa convivência de interdependência possível com os bandidos, seus filhos vão servir ao tráfico, comerciantes pagam taxa de segurança, todo mundo paga gás, energia e TV a cabo a milicianos. Vítimas viram criminosos.
São lugares em que volta e meia alguém que tenta fazer o papel do Estado acaba mal. Como foi o caso do jornalista Tim Lopes, da Globo. Como foram de Chico Mendes, Dorothy Stang e agora Dom Phillips e Bruno Pereira, em três tragédias anunciadas com diferença de 17 anos — 1988, 2005 e 2022.
Fazer essa associação é também um mínimo que Bolsonaro poderia ter feito, não para transferir a culpa. Mas para acrescentar o tamanho do desafio a ser enfrentado e, assim, valorizar o tamanho da empreitada em que sua equipe estava metida e amplificar a competência dela quando o resultado chegasse.
Que chegou, foi bom e rápido, diga-se. Sem qualquer participação dele. O STF, que tudo pode e tudo manda, acabou faturando mais que o próprio, mesmo com a decisão patética de formar um grupo com um fotógrafo e um cineasta famosos para ajudar nas buscas.
Mas ele se revela cada vez mais Bolsonaro e sua infinita capacidade de estar do lado errado. De uma falta de empatia que ainda impressiona, mesmo depois do quanto deu provas dela no enfrentamento da pandemia. Mas de outra, ainda maior e pior, com o cargo em ocupa.
Tem o senso comum do cidadão médio que tem medo de bandido e solta palavrão na TV e nas redes sociais como se estivesse no bar. Ganha voto por isso, aliás. Mas se afasta cada vez mais do conjunto da sociedade que espera um líder nessa hora difícil. Horrível, aliás.
> Publicado no Estado de Minas, 16/6/2022.
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