Polarização inédita há mais de ano e muito antes das eleições congela a disputa e fecha espaço para qualquer alternativa, como se primeiro turno fosse inútil
Há dias, Lula admitiu candidamente que fez gestões junto ao então presidente Fernando Henrique Cardoso para soltar os “meninos” que sequestraram o empresário Abílio Diniz, esquecendo-se de que um deles tinha currículo de terrorista em seu país e havia matado um vigilante pai de três filhos.
Como nas escorregadas anteriores, em que defendeu aborto, elogiou ditaduras e chamou a classe média de escravista, a derrapada não lhe custou um voto nas pesquisas eleitorais até a última do Datafolha, onde manteve sua folgada diferença de 19 pontos à frente de Bolsonaro em relação à pesquisa anterior.
A situação do outro é mais grave. Enquanto o petista faz estragos apenas a si mesmo no plano da retórica, o presidente da República comete/anuncia um desastre administrativo por dia para o país, até o ponto em que namora com golpes, intervenções e proteção a aliados corruptos.
Como seu principal adversário, porém, não cai um décimo nos indicadores das pesquisas eleitorais que o colocam no polo oposto incontornável e insubstituível do petista. Num teto de votação que vai de 28% a 34%, conforme o instituto, de onde não cai.
Até ganhou uns pontos no nordeste e recuperou terreno no sul e entre os ricos, na mesma Datafolha divulgada quinta-feira. A diferença estável de 19% em relação ao resultado do mês anterior se deve ao fato de que Lula também ganhou uns pontos no sudeste.
Os dois estão naquela situação em que podem sair pelados na rua, bater em velho ou tomar picolé de criança, sem que se altere a disposição dos eleitores que já os escolheram, refratários a qualquer acusação ou maledicência que macule suas, para eles, intocadas biografias.
Cristalizaram uma polarização tão radical, travada e impenetrável, que não deixa qualquer espaço para alternativas. A queda em sequência de dominó dos candidatos da terceira via impressiona, não pela competência eleitoral deles, mas pela absoluta impossibilidade de serem notados.
Mesmo com a melancia no pescoço dos lançamentos, entrevistas, ataques e inserções na TV dos dois que restaram. Ciro Gomes está tão cristalizado quanto a polarização em seus 8% e Simone Tebet experimentou o fenômeno impressionante de cair na mesma pesquisa, de 2% para 1%, depois das aparições.
Nunca houve nada parecido na história brasileira a tão longa distância do dia da eleição. Em geral, o eleitor ia testando ondas de candidatos até a disputa de morte nas vésperas do pleito, quando só, enfim, as diferenças, as demandas e as paixões ficavam nítidas.
Já hoje e desde pelo menos há um ano, quando Lula recuperou seus direitos políticos na canetada do STF, a impressão é a de que o eleitor já opera no segundo turno, como se fosse na semana que vem, depois de ter eliminado todas as alternativas.
Nessa linha, um primeiro turno não resolvido seria adiar o embate que não deve mudar em nada o quadro três domingos depois. Se a partida não se resolver no primeiro, vamos para uma espécie de prorrogação inútil além do tempo regulamentar, depois de um resultado já sabido.
Há um monte de explicações antropológicas, históricas e mesmo psicológicas para essa oposição ferrenha, nutrida a paixão e ódio de lado a lado, que vem desde que o homem se juntava em bandos na Idade da Pedra para se defender de outros bandos.
O que deu nas guerras e chegou ao futebol e à política — as duas principais atividades humanas em que a ideia de pertencimento fortalece os laços dentro da tribo e os fortalece no sentimento de ódio e vingança contra o adversário.
Nada mais parecido com essa polarização do que a guerra fraticida das torcidas de futebol, em que o ódio à torcida adversária fortalece os laços de pertencimento e isola a disputa em duas marcas fortes que impede a possibilidade de uma terceira via. Ser América não é opção se o baile bom é Atlético e Cruzeiro.
E chegou à comunicação em bolhas das redes sociais, em que torcidas por qualquer coisa ficaram mais isoladas, mais agressivas e mais irresponsáveis, diante da facilidade de guerrear no sofá sem encarar o inimigo de frente.
Veja o vídeo: Por que é difícil quebrar a polarização
Entre nós, para não ir tão longe, há o trauma recente e ainda insuperado do impeachment de Dilma Rousseff, produto de uma revanche ao PT que Jair Bolsonaro cavalgou como nenhum outro. Não é por outro motivo que ele é o polo de vingança a ser combatido que fortalece os laços de quem o combate.
Coincidiu que a disputa caiu nos dois, quando se julgava que Bolsonaro não tinha muito futuro como candidato à reeleição, depois de seu fiasco no enfrentamento da pandemia, e que Lula não era mais ameaça, até o STF restabelecer seus direitos políticos.
Um acabou tornando viável o outro. Como disse muito bem e a seu jeito Ciro Gomes, na frase que virou meio seu mantra contra os dois: “não haveria o bolsonarismo boçal, genocida e corrupto se não fosse a contradição profunda sob o ponto de vista moral e sob o ponto de vista econômico do lulopetismo”.
Tem também o fato de que os dois ocuparam a presidência da República. São duas marcas fortes do que a publicidade chamaria de “alto recall” que se cristalizaram como oposição na cabeça do eleitor, sem espaço para uma terceira opção.
Na publicidade, consagrou-se o princípio da dualidade que estimula a polarização entre marcas líderes de forma a eliminar a possibilidade de uma candidata da terceira via se meter entre elas. Entre, por exemplo, Coca e Pepsi, McDonalds e Burger King, Visa e Mastercard.
Outra ótima explicação é que nunca houve dois lados tão nítidos. O PT e o lulopetismo constroem há 40 anos o monopólio da esquerda contra o vácuo da direita que não conseguiu construir ninguém, antes de Bolsonaro, para representá-la.
O PSDB foi seu melhor inimigo, taxado de direita injustamente para fins eleitorais, tendo boa parte de suas ideias e afinidades ideológicas. Aceitou e não assumiu devidamente o papel, como Bolsonaro viria a fazê-lo, sem medo.
O capitão truculento conseguiu a façanha impressionante de consolidar uma marca de direita em pouco tempo, desde 2014 apenas, quando uma militância verde-amarela começou a ir para as ruas e perder a vergonha de dizer seu nome.
Antes disso e dele, os únicos presidentes de direita ideológica no Brasil, Janio quadros e Fernand Collor de Mello, não sobreviveram aos primeiros anos de seus governos para contar história.
Bolsonaro é totalmente o inverso da esquerda, não tem qualquer possibilidade de se afinar e se compor com ela, nunca, e atraiu com força de fé a parte da sociedade, que é enorme, talvez metade, que não tem qualquer identificação com o partido de Lula. Com Lula, talvez, em parte.
Leia: Militância de direita desbanca a esquerda e principal adversário de Lula
Para o bem ou para o mal, mais para o bem, o país pode estar vivendo o que democracias avançadas vivem desde sempre, de duas posições nítidas, à direita e à esquerda, representadas nos seus partidos conservador e progressista. O Conservador e o Democrata, por exemplo, nos Estados Unidos. O Conservador e o Trabalhista, no Reino Unido. Nunca houve espaço para terceira via.
Todas as pesquisas no Brasil estão sedimentando essa clivagem, que separa claramente as regiões e os eleitores que se identificam com um dos espectros e seus respectivos candidatos. Um pouco por ideologia mesmo — liberdade individual e econômica versus controle do Estado — e muito pela prática de cada lado no trato da coisa pública.
A direita branca, conservadora, rica e instruída dos estados ricos tende a Bolsonaro. A esquerda mestiça, progressista, mais pobre e menos escolarizada dos estados pobres tende a Lula. Óbvio que há gradações, nichos, faixas de escolaridade e pobres que flutuam no calor das urnas.
Veja-se o caso de Minas Gerais. Não me lembro de ter dois candidatos de coloração ideológica tão distintas e tão nítidas. O governador Zema é o retrato acabado dessa direita, Alexandre Kalil o dessa esquerda. Nenhum dos dois se sente confortável com o candidato a presidente do outro, nem por fisiologia.
A mudança para um cenário em que a polarização seja mais nítida e permanente pode estar só começando. Temos apenas 30 anos de vida democrática, depois de um século de muitos golpes e duas longas ditaduras, a de Vargas, de 1930 a 45, e a dos militares, de 1964 a 84. Estados Unidos e Europa, séculos.
Se a gente continuar e não houver nenhum golpe, vamos acabar chegando a um ponto em que polarização seja uma coisa boa.
> Publicado no Estado de Minas, em 28/6/2022.
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