Dados consolidados de 2015 registram que o Brasil teve mais de 59 mil assassinatos e mais de 6 mil mortos no trânsito, apenas nas rodovias federais.
Os mais de 65 mil correspondem a 365 aviões lotados com 180 pessoas, quase duas vezes e meia o voo da La Mia que levou a Chapecoense para a morte. Se caísse um por dia, teríamos a dimensão da tragédia. Mas, lá para o quinto, já estaríamos saturados de desastre de avião.
A comparação já foi feita, até por mim mesmo mais de uma vez, mas é a melhor que conheço para dimensionar como só encaramos nossos problemas quando e como a imprensa os enxerga. Agora mesmo caiu um boeing no sentido figurado nas estradas brasileiras (mais de 220 mortes apenas nas rodovias federais entre o Natal e o Ano Novo) e, como a imprensa não deu — não dá mais importância —, nós também, não.
São necessárias 56 mortes numa chacina para que sejamos informados e tomemos conhecimento da dimensão da tragédia dos presídios dominados pelo tráfico, de um porão do século XV lotado de gente que corta a cabeça de desafetos e as exibe para as câmeras do século XXI.
O problema é que, com o tempo, elas precisam ser cada vez mais maiores para chamar a atenção. Uma tragédia sensibiliza, mas sua repetição aniquila nossa capacidade de indignar.
Agora mesmo, enquanto escrevo, deve estar havendo um monte de chacinazinhas de 3 a 5 pessoas, nas favelas ou nas rodovias, que não serão mais notícia relevante. Arrisco um número mínimo de dez como condição para ganhar importância.
Se diz muito sobre a imprensa e sobre nós, claro que diz também sobre o governo. Essa entidade etérea, escorregadia, contraditória, um tanto atarantada com os fatos, que chega sempre atrasada à cachoeira dos fatos. Em outra imagem gasta e boa, para colocar o cadeado na porta arrombada, do carro, do avião ou do presídio desgovernado.
Curioso que, em sentido inverso, às vezes basta um caso, uma pessoa, uma celebridade, para termos alguns dias de manchetes e tomar consciência de outras tragédias. Como, para ficar na mais recente, a dos embustes milagreiros espelhado no ataque a facadas ao pastor midiático.
Às vezes, verdade seja dita, rola de ser um anônimo, uma criança de preferência, que aparece morta numa praia jogada ao mar de um barco de refugiados ou sem braço e com fuzil numa paisagem de guerra. Ou ainda, para ficar entre nós, do menino com leucemia que morreu dias depois de realizar o sonho de passar uma tarde com seu cantor favorito.
Uma única criança morta no mundo, numa situação gravemente injusta, tem o poder de acionar todo o mecanismo de repercussão que começa na câmera do fotógrafo e vai bater lá no fundo da nossa alma.
Tem algo de belo e trágico nisso, na arte de noticiar e do tamanho do número que ela precisa para produzir notícia. Cada vez maior ou emblemático.
Num mundo que só vai piorando, como nossa capacidade e dos governos de percebê-lo e mudá-lo.
Paulo de Almeida diz
“Num mundo que só vai piorando, como nossa capacidade e dos governos de percebê-lo e mudá-lo.” Aí o vc percebe algo fundamental. E o pouco conhecido goetheanismo pode ser uma ferramenta p quebrar este círculo vicioso, de não perceber a realidade…
Li dois artigos seus, e algo me chamou atenção.
Grato,Paulo
Adilson diz
A vida real não mais frequenta o noticiário, pois não gera dinheiro e, se o fazem, é para emoldurar o engôdo que é “ter liberdade” nesse nosso Brasil.
Vejo a continuidade dessa “dança da morte” em cada posto de saúde entupido … em cada casa noturna bombando … em cada escola ocupada por quem nem mesmo sabe o que se passa (efeito “manada”).
Enquanto lutarmos por mais creches (terceirização da formação dos filhos), “furarmos” filas, vizinhos usarem salto alto em apartamentos, OAB mamar nas tetas dos textos de multi interpretação de nossas leis, dos criminosos serem “coitados” e demais abusos de toda ordem, estaremos tão estagnados e apodrecidos moralmente que, subjugados, desde sempre, teremos sentimento apenas enquanto se olha o mais recente Zap Zap e, mesmo assim, apenas pelo breve tempo entre o desfile de videos de tragédias e até os sorrisos desregrados trazido pelas banalidades.
Vida que segue …
Ao largo disso tudo, crescem crianças …
Não considero que as crianças estejam mais inteligentes do que em passado próximo … nós sempre fomos voltados para o que é visual e auditivo … mas, observo, sim, que elas estão mais predadoras do que nunca (e mais, e mais!!!) … então, melhor investir em presídios, me levo a concluir!
Cristiano Marques diz
Aquela frase do Chico Buarque tem relação direta com esta coluna: a dor da gente não sai no jornal.
valdir diz
Nada de novo, apenas mais uma obviedade. Mais uma: midiaticamente a relevância “social” de um fato está diretamente associada ao governo de plantão. Se da classe que habita o topo da pirâmide social, subavalia-se e dilui-se a responsabilidade; caso contrário, superavalia-se e a responsabilidade é do governo central. No caso das ditas tragédias, bom ter em linha de conta que tais eventos, salvo para os próximos, parentes e amigos, produzem efeitos por trinta dias, nada mais. A propósito, basta verificar a assistência nos velórios, depois na missa de sétima dia e, por último, na de trinta dias. Para os demais, os que se orientam pela imprensa, basta a ocorrência de um novo fato, político ou trágico, para que seja reduzida a validade/tempo da comoção então ensejada. Talvez fosse o caso de voltarmos ao primórdios e apenas reclamar, em primeira ordem, da segurança pública, fator preponderante quando o assunto é liberdade de ir e vir,, e com menor ênfase na saúde e na educação, necessidades bem mais fáceis de resolver – plano de saúde e escolas privadas, Uma constatação: balas perdidas e/ou achadas matam por atacado pessoas saudáveis e de excelente grau de escolaridade.