Alexandre Dumas, pai, escreveu em O Conde de Monte Cristo a frase que guardo em destaque no meu compêndio de aprendizados sobre a arte dos políticos para mudar de lado e obter vantagem na nova ordem, como acontece agora no impeachment da presidente Dilma:
— Traição é uma questão de datas.
Queria ensinar nas reviravoltas de Edmond Dantès em sua saga de vingança que o traidor de ontem, como Roberto Jefferson, Eduardo Cunha ou Michel Temer, pode ser o herói de amanhã se a traição der certo.
É dele também a frase que me ocorre nesses dias de grandes conflitos morais, em que o procurador geral da República, Rodrigo Janot, e o relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, têm que colocar no banco dos réus os padrinhos de seus cargos:
— Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão.
Lula nomeou o primeiro e Dilma indicou o segundo, naquele tipo de favor que define uma história, e se acham no direito de merecer alguma boa vontade quando forem julgados por terem comandado, por ação ou omissão, o mais bem documentado esquema de desvios de dinheiro público do país.
Escolha política
Nosso sistema de contrapesos dá ao chefe do Executivo, governador ou presidente, o poder de indicar/nomear os chefes do Ministério Público, desembargadores nos Estados e ministros do STJ e STF na União.
É claro que toda indicação/nomeação resulta de escolha política em que se leva em conta também alinhamento, afinidades e, claro, interesses, tanto quanto competência. Na mesma medida que se espera retribuição, clara ou sutil, na hora do aperto.
Seria preciso estudo mais fundo para identificar retribuição comprometedora nos votos de ministros do Supremo Tribunal Federal, o mais exposto à opinião pública depois do Executivo e do Legislativo, sobretudo nos últimos tempos de protagonismo do tribunal.
Mas é tão óbvio o alinhamento de interesses que não é difícil relacionar suas afinidades com os governos e os titulares que os indicaram.
Quem há de duvidar da boa vontade e afinidades de Gilmar Mendes com os interesses do governo Fernando Henrique Cardoso, Dias Toffoli e Ricardo Lewandovski com os do governo Lula, Luiz Carlos Barroso e Teori Zavascki com os de Dilma?
Não fosse a relação de troca e expectativa de retribuição tão óbvias e Lula não teria dito em suas conversas gravadas pela Polícia Federal que Janot era um ingrato. Nem Dilma teria que explicar a delação de Delcídio do Amaral que nomeou um ministro do STJ com a missão de livrar o presidente da Odebrecht da cadeia.
Os interesses ficaram muito claros entre a decretação de prisão de José Dirceu por envolvimento no Mensalão, em 2013, e os recursos que o livrariam da pena acima de oito anos, passível de recurso em liberdade. Entre uma coisa e outra, o ministro Carlos Ayres de Brito se aposentou e o novo indicado por Dilma, Luís Roberto Barroso, fez rever consensos que irritaram amargamente o então relator Joaquim Barbosa.
Calibrar a ingratidão
Expectativas de troca e afinidades não explicam tudo, mas é da natureza do homem ser grato ou ingrato na hora certa.
Uma questão de datas.
A crônica política é cheia de cadáveres provocados por ingratos clássicos, em geral os vices de prefeitos, governadores e presidentes que aguardam uma hora de fragilidade para morder o calcanhar de quem lhes deu a oportunidade. Para ficar nos exemplos mais recentes, Itamar Franco em relação a Collor, Michel Temer em relação a Dilma.
A questão é calibrar.
Diante de um favor tão grande, cuja retribuição dependa de um malabarismo descomunal do juiz para respeitar a lei e a pressão de quem o indicou, o melhor mesmo é ser ingrato na medida certa.
Homens públicos de personalidade forte, grande preparo técnico, espírito público e noção de sua responsabilidade histórica são capazes de exercer suas, digamos, afinidades com aquele mínimo de dignidade que o homem não pode negociar.
Buscam os melhores argumentos na gama de possibilidades do vasto cipoal da legislação para aprovar ou rejeitar, dependendo da demanda. Levam em conta, além do respeito à lei e da pressão do padrinho político, a pressão da sociedade e o julgamento implacável da História.
Homens de baixa envergadura, de currículo, preparo e espírito menores, um tanto fascinados pela aura de poder descomunal que uma cadeira do Supremo confere, tendem a um adesismo simplista com alto risco de ridículo. Fazem contorcionismos amadores que, quando não caem no ridículo, sacrificam o país e a própria biografia.
A ingratidão na medida certa dá aquele tipo de alívio e sentido de missão cumprida, como deve ter ocorrido na quinta-feira véspera do domingo do impeachment (17 de abril), em que os ministros votaram em peso contra o recurso protelatório do governo para adiar a votação na Câmara dos Deputados.
É aquele momento em que o erro do outro lado alivia o devedor do peso do favor. Tipo:
— Tentei te ajudar, mas foi impossível diante do tamanho do seu erro. A um favor tão grande, só posso pagar com a ingratidão.
Gosto de imaginar que nossa mais alta Corte tem ingratos de alto nível, mais preocupados com o testemunho da opinião pública e da História. Os deslizes de gratidão disfarçados em votos complexos de centena de páginas não ofuscam o conjunto geral de ingratidão a serviço do país. Os votos que encaminharam o impeachment e agora para o afastamento do mal-afamado presidente da Câmara, são um bom exemplo.
Sinal de que estão exercendo a gratidão e a ingratidão com responsabilidade história, independente de datas.
Ramiro Batista diz
Ei, Carlos.
A imprensa opera, desde que me entendo por jornalista, com personagens que estão no centro do poder, na ordem do dia, e não com os periféricos. No meio, é famosa a expressão “Watchdog”, cão de guarda da sociedade, por se dar a obrigação de vigiar o governante de turno.
FHC e Aécio tiveram sua hora e apanharam devidamente na hora adequada: o primeiro nas privatizações e na reeleição, por exemplo; o segundo quando foi desconstruído assim que começou a crescer nas eleições de 2014. Você deve se lembrar: construção do aeroporto, falso déficit zero, flagrante em blitz no Rio. E, assim como Temer, vai apanhar mais quando começar a se destacar no centro no noticiário.
Na mesma linha, tenho por hábito e estratégia analisar o que vai a quente nas manchetes e cruzar com meu conhecimento passado em comunicação e estratégia política. Por outro hábito, vício ou virtude, não gosto — e a imprensa nacional também não — de analisar questões regionais. No meu caso, por uma certa aversão a bairrismos e por faltar informação que é mais abundante na imprensa nacional.
Agora, se você disser que a imprensa local é mais condescendente com os governos estaduais, responderei que você está certo. Como nos demais estados, onde há baixa competição jornalística e menos oposição política, jornais e governos se ajudam.
Mas vale para Aécio e vale para Pimentel. Atento para a imprensa local, você deve vir notando que a mesma boa vontade que havia com os governos anteriores, há com o atual.
Eu não tenho dificuldades de falar de quem quer que seja, desde que esteja na berlinda, no olho do furacão. E desde que, sempre, com cuidado e fundamentação.
Ainda não conheço bem meus limites aqui porque nunca fui censurado ou solicitado a deixar de dizer qualquer coisa.
Por enquanto, é isso. Obrigado por seu comentário.
Carlinhos de Venda Nova diz
Uai anularam o golpe?
Mas vim aqui pra sugerir uma coisa: Ramiro, vc como repórter bem informado e patriota, poderia se aventurar e tecer preciosa reportagem sobre a lista de Furnas, Banestado e privatizações.
Existe um livro do Amaury Ribeiro Junior que pode auxiliá-lo.
Se preferir se ater a fatos mais recentes, poderia tecer sua importante opinião sobre o porquê da dificuldade de investigação sobre políticos de outras legendas, mesmo com eles sendo delatados várias vezes. Uns de densa plumagem. Ah e tem o vice também.
Porque a mídia não dá a mesma notoriedade às investigações? Os vazamentos pararam porque?
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