A atriz Cecília Bizzoto levou um tiro no peito porque tentou avisar a polícia que estava sendo assaltada, depois de cometer outra imprudência maior: parar o carro e abrir a porta da garagem para entrar em casa no seu bairro, classe média alta de Belo Horizonte.
Se tivesse entrado de noite no metrô de Nova Iorque, no final dos anos 80 e início dos 90, e caído na besteira de olhar para um dos tantos viciados em crack, corria o risco de ser roubada, estuprada e morta.
Trens e estações haviam se transformado em sucursais do inferno — pichados, tomados de lixo, ocupados por viciados, mendigos e assaltantes que dominavam as roletas, cobravam pedágio, assaltavam e matavam.
Eram a melhor representação do estado de caos da cidade que detinha um dos maiores índices de criminalidade do mundo.
Em poucos anos, porém, esses índices caíram a quase zero, na mais rápida, surpreendente e famosa política de redução de violência com métodos simples e óbvios que viraram modelo invejado mas não necessariamente seguido por metrópolis em todo o mundo.
A chamada “política de tolerância zero” nasceu da teoria da janela quebrada de dois criminalistas, James Q. Wilson e George Kelling.
Ela parte do princípio de que a desordem é a principal causa dos crimes e a janela quebrada, um de seus principais símbolos. Se uma janela está quebrada e ninguém conserta, significa que ninguém se importa e que ninguém está no controle.
Modelo de tolerância zero
Sinais semelhantes, como pichações, mendicância ostensiva e outras desordens públicas, são uma metáfora dessa janela – passam a mesma ideia e funcionam como estímulo ao crime, num círculo crescente e vicioso.
– Assaltantes e ladrões, oportunistas ou profissionais, acham que suas chances de serem presos ou até identificados diminuem se atuarem em ruas onde as vítimas em potencial já estão intimidadas pelas condições reinantes – disseram eles num estudo de 1982, Broken Windows: the police and neighborhood safety, (Janelas Quebradas: a polícia e a segurança da vizinhança) .
Com o tempo, por contágio, outras pessoas começam também a desrespeitar a ordem pública e a cometer pequenos crimes que podem redundar em grandes. Como viam que era comum e impune pular roletas, por exemplo, cidadãos comuns e crianças também começavam a fazer o mesmo.
Contratado como consultor do metrô, George Kelling teve grande dificuldade de convencer sua direção de que era preciso atacar prioritariamente problemas prosaicos como pichações num sistema em guerra. Mas um novo diretor resolveu encarar o desafio, num sistema radical de limpeza dos vagões todas as noites, de forma a deixá-los limpos pela manhã. Se fossem pichados durante o dia, voltariam a ser limpos à noite, assim que estacionassem na garagem.
Um novo chefe de polícia de trânsito, duro e quixotesco, também resolveu atacar o que parecia um problema pequeno – o calote nas passagens, cerca de 170 mil pessoas por dia. A ideia é de que eram um símbolo de desordem que estimulavam crimes maiores.
Pois ele montou uma equipe de policiais diante das roletas, passou a prender, algemar e colocar os caloteiros em fila nas plataformas, passando um claro sinal de que haveria ordem dali para frente. Montou uma delegacia num ônibus para facilitar identificação e a montagem de processos criminais, para enfrentar uma dos maiores entraves. Policiais não prendiam porque se gastava o dia inteiro com a prisão, o deslocamento, o preenchimento de formulários.
Nomeado posteriormente chefe do Departamento de Policia de Nova Iorque, pelo prefeito Rudolf Giuliani, esse sujeito, William Bratton, começou atacando os lavadores de para-brisa e os que urinavam nas calçadas como início do modelo de tolerância zero que mudou o perfil da cidade para sempre.
Obcecado pela teoria da janela quebrada, considerava crimes os pequenos atentados contra a qualidade de vida com os quais os habitantes da cidade já haviam se acostumado, a ponto de nem acharem se tratar de crimes.
Belo Horizonte, como se sabe, é cheia de janelas quebradas que deram no dedo que puxou o gatilho contra a atriz indefesa do Santa Lúcia.
Belo Horizonte sem segurança
Somos uma cidade suja, de praças tomadas por mendigos e delinquentes, crianças perdidas em sinais junto a lavadores de para-brisa e desocupados cada dia mais ostensivos. Suas abordagens estão cada vez mais agressivas, bem em acordo com a ideia de que, sim, se essas janelas estão quebradas, é porque ninguém se importa. E ninguém está no controle.
Há dias, acompanhei o caso de um rapaz que roubou dois xampus e saiu em disparada. Foi preso e levado junto com a testemunha.
Mas os pobres policiais que cumpriam seu dever e a testemunha, depois de esperarem três horas numa delegacia, foram enviados para outra, porque o delegado, certamente ansioso para encerrar seu expediente, alegou sem provas que os rapazes tinham indícios de maus tratos. Em outra delegacia, onde o delegado de plantão chegou depois das 21 horas, enredaram por um processo burocrático que se arrastou até por volta de meia noite.
Eram só dois xampus. O proprietário, a testemunha, os policias e certamente muita gente deve pensar, no atual estado de coisas, que não vale à pena brigar por tão pouco.
Como a maioria da população, já tão acostumada com a dificuldade de entrar em garagens de noite, parece culpar Cecília Bizzoto pela bala que a matou. E assim, de justificativa em justificativa, vamos quebrando outras janelas.
* Com informações de O Ponto da Virada, de Malcolm Gladwell, e do Blog da Insegurança .